Há um curto período do ano em que, quando anoitece, a Praça do Ferreira é morada de todas as Fortalezas. Nos dias de Natal de Luz, a árvore natalina tradicionalmente instalada ali parece dar uma chance diferente ao tal “coração de Fortaleza”. Atrai famílias, encanta crianças, é o retrato da “cidade que dá certo”, com o Centro habitado, efervescente. Porém, nas noites restantes, entre um Natal e outro, a praça vira, à noite, morada de esquecidos - pela família, pela sociedade, pelas oportunidades. Assim, o tal “coração de Fortaleza” se fantasia de “casa” (até com rede), mas é daquelas pouco aceitas.
No coração que é casa, as “visitas” se tornam escassas depois das 19 horas. Com o fechamento dos comércios da região, braços segurando pedaços de papelão se multiplicam em busca de abrigo para a dormida. São os moradores chegando. A partir daí, quem não é “de casa” segue com passadas apressadas que contrastam com a tranquilidade dos que ficam.
Ficam por ali histórias e o sono de pessoas como Idejan Melo Tavares. Aos 40 anos, seis meses atrás Idejan deixou para trás a carreira de sargento do Exército, a esposa, o Rio de Janeiro e partiu para o Ceará “com a cara e a coragem”, como diz. Foram problemas em casa e no trabalho que o fizeram partir. No Ceará, sem moradia, sem oportunidade, encontrou na praça (lugar onde só se sobrevive com uso de alguma substância como álcool - até de posto de combustível - ou drogas, conforme diz) corações dispostos à parceria. Tornou-se “filho por respeito” de Ademilson José da Silva, 60, (o “Pernambuco”) há anos nas ruas. Junto com José de Morais Fidalgo, 67, (o “Zé da Sopa”) formam grupo com acordo de não roubar, mentir ou pedir – como Ademilson define.
José, que se declara “o mais antigo” habitante do local, com 30 anos de Praça do Ferreira, diz que a população habitante da praça tem crescido. Ademilson acusa presença mais intensa de “bandidos” – que seriam os causadores do medo de quem passa pelo local em relação à população em situação de rua.
O ex-jogador de futebol, que conta ter atuado em clubes como Náutico e jogado, inclusive, no Maracanã, reflete que “a rua ensina a viver”. Mesmo com abrigo na casa dos irmãos, tem noite em que Ademilson prefere dormir na Praça do Ferreira. Está ali “por ironia do destino”. Sonha em ter a liberdade de uma casa para chamar de sua. Porque nos abrigos e instituições pelos quais passou sobram isolamento e sentimento de prisão. “Mudo de vida por uma casa minha”, projeta.
Ocupação da praça
Na Praça do Ferreira, a população parece tão enraizada que, além da rede pendurada entre uma palmeira e um poste, há colchões, panelas, cobertas. Crianças dormem e brincam de um lado enquanto outros já se encostam para o sono. Bancos são cama, chão é banheiro.
A situação é conhecida pelo Município. Segundo Cláudio Ricardo, titular da Secretaria de Trabalho, Desenvolvimento Social e Combate à Fome (Setra), equipes de abordagem acompanham a população de rua que habita a praça.
“Nós não podemos tirar as pessoas de maneira forçada. Isso tem que ser um processo de convencimento. Tem que ofertar os serviços, as alternativas. Vamos focar nossa atenção na questão da Praça do Ferreira”, garantiu.
Saiba mais
Conforme o secretário Cláudio Ricardo, muitas das pessoas em situação de rua já passaram pelo Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, o Centro Pop, e algumas chegaram a receber aluguel social. “Muita gente faz questão de permanecer na rua. Nós estamos trabalhando para ordenar o máximo possível. Parece que ali há uma certa organização do movimento pra chamar a atenção”, diz.
De acordo com Cláudio, em agosto, a praça deve ser a primeira a receber uma ação intersetorial do Município com foco na população de rua. Serviços de saúde e assistência social devem ser ofertados. Na ocasião, deve ser instalado o Comitê Municipal de Políticas Públicas para a População de Rua, anuncia o secretário.
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