O POVO CARIRI 20/08/2018 - 15h53

Você já parou para pensar nos legados de Padim Ciço?

Mesmo após mais de 80 anos de sua morte, Padre Cícero segue no imaginário das pessoas e nas memórias de Juazeiro do Norte. Turismo religioso, economia, política e meio ambiente são temas que carregam referências ao sacerdote
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Kelly Hekally kellyhekally@opovo.com.br
Iana Soares
Em Juazeiro do Norte, Padre Cícero é símbolo de diferentes aspectos, como os legados turístico, político, ambiental e desenvolvimentista a ele atribuídos

O convite é para que no folhear das próximas páginas sejam deixadas de lado polarizações que giram em torno do seu processo de santificação e do fenômeno conhecido internacionalmente como “o Milagre de Juazeiro”. Falecido aos 90 anos, em 1934, e ícone religioso Brasil afora, Padre Cícero é símbolo de diversos aspectos em Juazeiro do Norte, cidade em que os legados turístico, político, ambiental e desenvolvimentista são, por muitos, creditados a essa figura religiosa. 

Dono de uma trajetória explorada pelo jornalista e escritor Lira Neto no livro Padre Cícero - Poder, Fé e Guerra no Sertão, pela doutora em Ciência da Educação Annette Dumoulin e pelo professor de História no Queens College da Universidade de Nova Iork Raplh Della Cavia, Cícero Romão Batista é “indissociável da história do Ceará, em primeiro lugar, em razão da própria constituição sociológica e geopolítica do Estado”, descreve Thiago Zanotti Carminati, antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Regional do Cariri (Urca). 

“Um fato que converge diretamente para a expressão de líder político e religioso nas proporções que o Padre Cícero tomou diz respeito à sua própria formação. No ambiente do Seminário da Prainha, além do estudo aprofundado a respeito da ortodoxia católica, um movimento intelectualmente rico foi produzido por sua geração. E diante da chamada ‘questão de Juazeiro’, responsável por levá-lo ao processo de suspensão de suas ordens sacerdotais, por outro lado, colocou em evidência seu papel enquanto líder político”, defende Carminati.

A relação com os fieis é também uma característica positiva atribuída a Padre Cícero, que chegou a ser tema de composição de Tim Maia. Segundo Padre Rocildo Alves Lima Filho, o sacerdote foi um espírito forte de alma católica e do povo, que encontrava nele sua raiz católica da maneira mais popular possível. Mestre em Filosofia pela Universidade Gregoriana de Roma, o padre reforça o trabalho humanizado desenvolvido pelo "Padim", maneira como era também conhecido. “A obra forte de acolhimento, de caridade, de socorro aos necessitados, especialmente na época de seca e de abandono e desolação política, são importantes feitos do Padre Cícero. Desde quando ele chegou a Juazeiro do Norte, seu olhar foi para os mais pobres, para os considerados loucos. Era um padre que tinha caridade e partilhava o que tinha para socorrer e alocar as pessoas.”

Diretor do Departamento Histórico Diocesano Padre Antonio Gomes de Araújo (DHDPG), padre Francisco Roserlândio de Souza credita a Padre Cícero uma visão ampla da realidade da época. Para o sacerdote, essa qualidade fez com que Padim fomentasse a organização do povoado em uma cidade. “A preocupação em preservar a sua correspondência, ativa e passiva, permite hoje melhor compreender o contexto e os atores de sua época – com conflitos, acordos, debates etc. E, por isso, ajuda pesquisadores contemporâneos das mais diversas áreas do conhecimento que se debruçam sobre a sua figura e os fatos relacionados à região”, acrescenta padre Roserlândio.
Camila de Almeida
Aproximadamente dois milhões de romeiros visitam Juazeiro do Norte para a experiência de estar "na terra do Padre Cícero"

Turismo religioso e religiosidade
De acordo com a Secretaria de Turismo e Romaria (Setur) de Juazeiro do Norte, todos os anos, aproximadamente dois milhões de romeiros visitam o município para a experiência de estar “na terra do Padre Cícero” e desfrutar as vivências que a religiosidade da local proporciona. A Colina do Horto - onde ficam situadas a estátua do Padre Cícero (que em 2019 completa meio século), o Museu Vivo do Padre Cícero, a Igreja do Senhor Bom Jesus do Horto e a trilha de acesso ao Santo Sepulcro - é cartão postal da cidade.

Padre Neri Feitosa, 90, vigário paroquial da paróquia de São Francisco das Chagas, em Canindé, e um dos estudiosos do sacerdote, diz que a grande obra do Padre Cícero foi o trabalho pastoral. “Àquela época, ele já realizou o que o Papa Francisco faz hoje, esse movimento de igreja de periferia, no meio do povo. A igreja de Padre Cícero não era uma igreja de sacristia, de tijolo. Era uma igreja para o cidadão. De pessoas.” 

Na visão de padre Rocildo, Padre Cícero, apesar de uma longa vida marcada por punições e reprovações oficiais por parte de autoridades religiosas, sustentou uma indissolúvel fidelidade à Igreja e ao povo. “Vale destacar que Padre Cícero nunca levantou publicamente nenhum sinal de amargura. Pelo contrário: ele teve respeito e fidelidade em relação a todas as autoridades da Igreja. Não há nenhum conflito aberto, exposto. Ele fez tudo com muita elegância. Na consciência dele, parece-me, nunca houve intenção de criar desconfortos e ele soube continuar cultivando sua relação com a Igreja e com o povo. Jogou dos dois lados”, opina.

Carminati, assim como os dois religiosos, pontua o aspecto humanitário do Padim. O docente explica que, embora haja registros argumentando um perfil autocrático, Padre Cícero sempre lidou com desde o mais pauperizado devoto até as figuras da elite nacional. “Padre Cícero exerceu um tipo de relação horizontal por meio de um discurso que tinha mais a ver com um aconselhamento do que com um discurso de ordem, como uma pessoa que se impõe. Neste sentido, acredito que Padre Cícero optou muito mais por ser amado do que por ser temido”, diz.

Ações como o “Bem-Vindo, Romeiro” são fruto do crescimento econômico da cidade em torno da devoção a Padre Cícero. Iniciado em setembro de 2017, o projeto estende-se até julho de 2018 e tem como ideologia potencializar o atendimento ao romeiro e ao turista em Juazeiro do Norte. “Para esse primeiro momento do projeto, foi escolhido o tema ‘Atendimento Humanizado’. A intenção é despertar nos empresários e colaboradores a necessidade de bem acolher esse contingente de romeiros que chega à terra do Padre Cícero”, explica Josefa Costa Bezerra, diretora de Comércio e Serviços da Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Inovação (Sedeci) de Juazeiro do Norte. Conforme Josefa, para a iniciativa, trabalhadores do comércio informal, comerciantes e colaboradores do centro da cidade, bem como do Mercado Central Governador Adauto Bezerra e do Cariri Shopping, foram capacitados.

Desenvolvimento sócio- econômico de Juazeiro
Há oito anos, Alexandre Sandes, professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA), é estudioso e “observador” de Padre Cícero. “A primeira impressão que tive quando cheguei era a de que o poder de Padre Cícero espraiava-se por toda a cidade. Impossível passar por um espaço e não esbarrar na imagem de Padre Cícero. Uma espécie de poder simbólico, instrumento de organização social. Por meio de sua imagem, reforçam-se paradigmas, ideias e valores nos vários âmbitos da vida – religioso, econômico, cultural. Além de mover a fé, Padre Cícero move parte da economia”, diz.

Sandes descreve que diversos empresários locais creditam ao Padim o sucesso dos seus empreendimentos e complementa que, além do sucesso das atividades econômicas, há também positividades no setor agrícola e manufatureiro. “Esse discurso ecoa até hoje, sendo o Padre Cícero o principal baluarte do crescimento de Juazeiro, município que logo superou o Crato após sua emancipação.”
Camila de Almeida
Na esfera ambiental, Padre Cícero recebeu, da Organização Não Governamental (ONG) Greenpeace Brasil, a alcunha de "Padrinho da Floresta"

Emancipação de Juazeiro e articulação política
A capacidade de se relacionar harmonicamente com o povo e com setores do município é, segundo Sanches, um dos fatores da estabilidade de Padre Cícero enquanto primeiro prefeito de Juazeiro do Norte. De acordo com o professor, a luta de representações no processo de emancipação de Juazeiro do Crato repercutiu fortemente em jornais impressos, inclusive em editoriais e pasquins durante o período. 

“Padre Cícero enquanto pessoa e personagem era precisamente a figura do líder que se ajustava à mentalidade do povo de sua época. As formas de repercussão do seu legado são claramente frutos que poderão ser colhidos por um longo tempo. Juazeiro do Norte, em toda extensão de suas contradições, pode ser considerada uma cidade próspera, sobretudo se comparada à imensa maioria das cidades brasileiras”, defende Carminatti.  

Segundo o cientista político e professor de Ciências Políticas do curso de Direito da Unifor Francisco Moreira, a carreira política de Padre Cícero nasce de maneira circunstancial. “Padre Cícero começa a trabalhar em Juazeiro do Norte, à época uma vila pobre e com muitas dificuldades. Isto vai levá-lo a desenvolver contatos. Na medida em que a sua influência cresce, cresce a relação que se estabelece no entorno. Pode-se dizer que, enquanto ator importante na estrutura local de dominação, Padre Cícero era um dos principais articuladores, uma vez que à época era comum que padres desempenhassem algum tipo de papel político e fizessem quase todas as ações políticas”, descreve.

Na sequência, de acordo com Moreira, esse perfil do Padre Cícero atraiu políticos locais e, posteriormente, ele passa a ser uma figura estadual. “Essa projeção estadual vai levá-lo à posição de vice-governador e, assim, cada vez mais, o papel de articulador vai pesar, dentro do qual ele faz um processo de mediação política na região. Muitos entendem como um papel político, mas na verdade Padre Cícero é um personagem. É importante destacar Floro Bartolomeu, médico baiano que morava em Juazeiro do Norte e que a partir da influência do Padre Cícero tem uma ação política na região.”

O professor adensa ao cenário que corroborou para a projeção política de Padre Cícero sua participação no Pacto dos Coronéis, ligado ao desmonte de uma estrutura política durante o coronelismo no Ceará. “Existia a figura do coronel, que era fundamental. A estrutura funcionava verticalmente, de cima pra baixo. Com a queda de Acyoli (oligarca, Nogueira Acyoli ocupou o cargo de presidente do Ceará entre o final do século XIX e início do XX), tudo o que dava sustentação às pessoas ligadas ao Estado ficou comprometido. É a partir do Pacto dos Coronéis que vai surgir uma nova estrutura, que comporta poderes paralelos. Acredito que Padre Cícero vai ser ‘utilizado’ por essas forças que veem nele uma figura importante e respeitada.”

Preservação ambiental
“Não toque fogo no roçado nem na caatinga. Não cace mais e deixe os bichos viverem. Faça uma cisterna no oitão de sua casa para guardar a água da chuva. Plante cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o sertão todo seja uma mata só.” Estes são alguns dos 11 preceitos ecológicos deixados por Padre Cícero, razão da alcunha de “Padrinho da Floresta” dada pela Organização Não Governamental (ONG) Greenpeace Brasil ao cratense. 

Marcio Astrini, coordenador de Políticas Públicas da entidade, explica que o cearense foi “descoberto” no início desta década pela ONG durante o processo de construção de uma das campanhas institucionais cujo intuito era sensibilização social e legislativa quanto à discussão do novo Código Florestal. “Padre Cícero chamou nossa atenção pelo fato de seu conhecimento fugir ao universo acadêmico, bem o perfil que procurávamos. Trata-se de uma revelação útil e extremamente grata. Ele foi um dos maiores líderes de uma população extremamente sofrida. Uma das coisas maravilhosas é que Padre Cícero criou esses princípios porque havia interesse na temática por parte dele”, destaca Astrini. 

Glauco Vieira, professor do curso de Geografia da Universidade Regional do Cariri (Urca), explica que os preceitos ambientalistas de Padre Cícero são retratados em cordéis e panfletos, e tidos pela população local e estudiosos como um compilado de extrema relevância. “Na Capela do Horto, por exemplo, tem uma árvore com seus preceitos ecológicos. Um dos grandes benefícios impulsionados pelo padre foi a arborização, que ele àquela época já entendia ser um grande benefício à cidade.” 

Ponto de vista
Evaldo Lima, 49, historiador

Padre Cícero abriu precedente ao, naturalmente, questionar práticas do misto catolicismo popular e romanização. Ele era uma figura complexa demais e demasiadamente humana. Padre Cícero é um santo do povo e não precisa passar pelos cânones da Igreja Romana. Penso que o verdadeiro milagre do Padre Cícero é a cidade de Juazeiro do Norte, que se tornou um grande centro de desenvolvimento econômico e referência de espiritualidade.

Para ver Padre Cícero
A filmografia sobre Padre Cícero é vasta, com referências também a seus legados.
Caso queira, aposte nas películas listadas abaixo. 

1 Joaseiro do Padre Cícero (Adhemar Bezerra de Albuquerque, 1925) 
2 O Milagre em Juazeiro (Wolney Oliveira, 1999)
3 Os Milagres de Juazeiro (Hélder Martins de Moraes, 1975)
4 Sangue no Sertão (Antônio Sagrado Bogaz, 2012)

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