ana miranda 17/04/2016

A última crônica

notícia 2 comentários
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Ana Miranda S/ Email

Esta poderia ser uma crônica sobre o Fagner: uma pequena história de como eu o conheci, quando éramos crianças e vim passar férias na casa de tios em Fortaleza nos anos 1960. Ele era um menino bonito de uma família vinda do Levante, que morava ali vizinha.

Ou, mesmo, uma crônica sobre o riacho Pajeú, testemunha do nascimento de Fortaleza. E Fortaleza menina também é tema que daria uma bela crônica: aqueles primeiros moradores plantando tabaco e hortaliças e tirando água límpida do riacho para seu dia a dia, uma índia escravizada que passa carregando um cesto, um soldado meio roto que vigia do alto da paliçada de paus, todos temem ataques de índios, de piratas, invasões de holandeses, o sino toca na capelinha, a praça se enche de moradores, há comércio de alimentos, escravos, armas, tecidos... uma viagem no tempo.

Quem sabe, a crônica Il signore Severino, sobre um dia em que fui, com um grupo de ilustres, a um famoso restaurante de comida italiana e o chef de cuisine veio à mesa para ouvir nossa opinião. A comida era um deslumbre, e o chef era um cearense de Crateús. Cearenses são chefs em restaurantes de pratos franceses, vietnamitas, mexicanos, no Brasil, e mesmo em restaurantes localizados em países deste vasto mundo. Sem esquecer de falar sobre o Chico do La Mole, um garçom cearense que acabou dono da rede desse imperdível restaurante no Rio de Janeiro. Seria uma crônica divertida, a mostrar um pouco do nosso caráter empreendedor, arrojado, viajante.

Poderia, também, ser uma crônica sobre o baobá que foi plantado no Passeio Público pelo Senador Pompeu e é a árvore mais célebre de Fortaleza; sobre a pracinha da Cidade 2000 que todo anoitecer se transforma num amplo restaurante ao ar livre e que caiu no gosto de poetas, seresteiros, namorados, uma delícia de lugar. Ou sobre as três praças do Papicu com diferentes sistemas de “governo”: capitalista, comunista, e anarquista – uma delas é a nossa primeira experiência de administração por parte de associação de moradores.

Uma crônica poética sobre as dunas e os coqueiros, ou a delícia de andar de bicicleta; ou sobre uma das mais singelas personagens de Rachel de Queiroz: a cunhã. Só Rachel daria uma centena de crônicas, como a Rachel cozinheira e seus pratos, a Rachel menina de quatro anos em pé à frente da biblioteca de seu pai, retirando Ubirajara de José de Alencar, e a leitura que fez desse romance, a Rachel mocinha trabalhando na redação do jornal vestida de melindrosa, ou o caso do seu segundo livro, João Miguel: ela teve de mostrar os originais ao Partido Comunista, antes de publicar o romance, e o Partido mandou que mudasse a história, um operário não podia matar outro operário, que devia ser morto pelo patrão – e Rachel saiu em “desabalada carreira”, para romper com o Partido. Poderia ser uma crônica sobre luta e resistência da literatura, de escritores como Graciliano Ramos e Euclides da Cunha... ou sobre a relação de Alencar com Machado de Assis...

Assuntos não faltam: manteiga da terra, comida de seca, gemada na infância, a camisola de algodão e rendas, Ana Triste, dona Guidinha do Poço, o vinho da jurema, Sartre e Simone no Ceará, o teatro de mamulengo, a mestra Assunção e seus maravilhosos bolos confeitados, a antiga escritora cearense Francisca Clotilde, a fortaleza de Schonnenborch, pílulas do Doutor Matos, camelos no Ceará, o bumba-meu-boi, a tumbérgia nos jardins do Theatro, catadores de pequi em Juazeiro, engenhos de pau, macaxeira, Moreira Campos, os tremembés que se formaram doutores na universidade, o sobrado Doutor José Lourenço, o Velho Lua, Jacob Rabbi no Ceará e as sangrentas batalhas em nossos areais... ah, Patativa do Assaré, Juvenal Galeno, os tangerinos, a manipueira, o arquiteto e professor Liberal de Castro, uma crônica graciosa e rebelde sobre a Pequena Notável Adísia Sá, outra sobre o Cego Aderaldo, sobre xilogravura, Lampião em Fortaleza, meu bisavô tocador de cavaquinho, uma derramada e sentimental sobre a minha queridíssima babá Odete, mais uma irritada sobre o lixo nas ruas da cidade, outras, sobre as corridas de jangada, a carnaúba de que me falou tão sabiamente dona Lúcia, o congo, o reisado, o coco, o Dragão do Mar... Ceará é uma riqueza só.

Mas esta é uma crônica de despedida, de saudades. Da expectativa de renovação dos sonhos e celebração de um tempo que foi de boas conversas, boas lembranças, novas amizades. Da honra de ter participado de algo tão nobre como é o delicado trabalho de formar opinião. E criar laços.

espaço do leitor
Francis Gomes Vale 16/06/2016 08:17
Não estou acreditando que a cronista esteja se despedindo de verdade. Se vai embora da terra, pode continuar escrevendo de longe. Se não vai, é porque cansou ou não tem mais o espaço. Afinal, pode-se saber o motivo de tão lamentável perda?
MARCELO PIMENTEL 17/04/2016 17:23
Obrigado por compartilhar suas referências.
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