O maior enigma da literatura brasileira é se Capitu traiu ou não traiu o Bentinho. Desde o tempo em que Machado de Assis publicou seu romance, Dom Casmurro, debate-se o tema: Capitu traiu? Não traiu? Aqueles terríveis olhos oblíquos de cigana dissimulada... Aqueles olhos de ressaca... Aquela sedutora menina de tranças... Aquele jovem apaixonado e obsessivo... Delirante... O filho que nasce ruivo como Escobar... O velho Machado fez questão do mistério, escolheu narrar na voz de Bentinho, um homem tomado de ciúmes, e assim, a dúvida viverá para sempre. Mas há outro enigma na literatura, e que nos diz respeito, nos diverte, e trai nosso lado zombeteiro: teria Iracema caminhado tanto, em tão pouco tempo, ou não?
Já assisti a acesos debates e zombarias. Caminhou? Não caminhou? Uns leitores têm certeza de que a caminhada de Iracema é inverossímil, ninguém seria capaz de percorrer o trajeto do Ipu a Fortaleza a pé em “quatro luas” – fora um pequeno trecho, em jangada. Outros acham que seria impossível Iracema sair da praia de Mucuripe antes do nascer do Sol para ir embelezar-se de manhã na lagoa de Porangaba. E dali, Iracema ainda “divagava até as faldas da serra do Maranguab” para colher as frutas mais saborosas de todo o país.
Mas, logo nas primeiras linhas do romance, Alencar já prepara o leitor para as longas e velozes caminhadas de sua heroína: “Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas”. Moça tão leve, quase voava sobre a relva, enquanto percorria as distâncias.
Quem é bom de matemática, faça as contas: a ema selvagem, a ave mais veloz das Américas, corre uns sessenta quilômetros por hora, mais ou menos a mesma velocidade que o corpo humano seria capaz de alcançar. O recorde de um atleta velocista numa corrida de cem metros é de pouco mais de quarenta quilômetros por hora. A distância entre Ipu e a praia de Mucuripe, onde o idílico casal Iracema e Martim acampou, é de uns duzentos e cinquenta quilômetros em linha reta. Não sou boa em contas, mas, se dividirmos por quatro a distância, o resultado é uns sessenta e poucos quilômetros por dia. Se um velocista cumpriria isso em uma hora e meia...
E, quando de madrugada Iracema vai acompanhar seu amado na caça, de Mucuripe a Porangaba, ela precisaria caminhar apenas uns quinze quilômetros. Se a velocidade média de uma pessoa a caminhar num passo apressado é de doze quilômetros por hora, Iracema venceria com facilidade, num amanhecer, essa distância.
Quem já caminhou com índios, e os conhece bem, afirma que a caminhada de Iracema é perfeitamente plausível. Uma índia seria capaz de percorrer sessenta quilômetros em apenas um dia. A pé, e descalça. Dá para acreditar que Iracema venceu esse trajeto sem perder o fôlego. E Martim, também. Ainda muito jovem, caminhou na expedição de Pero Coelho, desde Olinda até o Parnaíba, retornando ao Jaguaribe. Caminhava, como seus companheiros, vestido com uma pesada armadura de metal, carregando sua espada, seu bacamarte, munição, pertences pessoais. Martim não era muito diferente dos guerreiros tabajaras, ainda mais rápidos do que Iracema. Num certo momento do romance de Alencar, o chefe potiguara diz ao ouvido de Martim que mande Iracema voltar para a cabana de seu pai.
“Ela demora a marcha dos guerreiros”, diz o índio.
Essas matemáticas todas não podem, no entanto, desvendar um mistério sentimental, como o da traição ou não traição de Capitu. Ninguém, jamais, vai ter certeza da culpa ou inocência de Capitu, e esse mistério a torna ainda mais atraente.
Agora, separemos uma a uma as letras do nome de Iracema: i – r – a – c – e – m – a. Com essas mesmas letras, podemos formar a palavra América. E esse é o verdadeiro enigma deixado por Alencar: quando criou o nome da mais célebre personagem da literatura brasileira, teria ele feito de propósito um anagrama perfeito da palavra “América”? Ou foi uma coincidência? A poesia indígena era chamada de poesia americana. O termo “americano”, no século 19, tinha uma forte conotação política de “não europeu”, contra o colonizador. Sabia? Não sabia? Caminhou? Não caminhou? Traiu? Não traiu? Enigmas da literatura, enigmas da vida...
Alguns têm a coragem da certeza. Dalton Trevisan, por exemplo, sentencia: “Se Capitu nunca traiu Bentinho, então Machado de Assis se chamava José de Alencar!”
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