ana miranda 21/02/2016

O cearensês

notícia 3 comentários
DictSql({'grupo': 'Colunista', 'id_autor': 16324, 'email': 'S/ Email', 'nome': 'Ana Miranda'})
Ana Miranda S/ Email

Quando cheguei ao Ceará, há uns dez anos, tive logo nos primeiros dias uma surpresa. A moça que trabalhava para mim me disse que ia “rebolar no mato”. O quê?, pensei, rebolar no mato? Não fazia muito sentido ela ir requebrar os quadris no meio de um matagal. Foi então que entendi: ela ia jogar no lixo alguma coisa.

Fiquei fascinada com a perspectiva de conhecer novas expressões e palavras. Ia dar vasto material para a minha literatura. Quem sabe um romance todo nesse modo de falar, como Guimarães Rosa fez com a voz do sertanejo mineiro. Passei a anotá-las. Hoje tenho alguns caderninhos só com essas falas escutadas aqui e acolá. Ontonte, arengar, cabra atarrachado, É o cão! Aprendi o que é botar boneco, bonequeiro, brechar, batoré, beréu, só para mencionar algumas começadas com a letra B. E me encantava com expressões que ouvia, sempre devidamente anotadas. “Jumento sem mãe”, que significa um pobre coitado, um zé-ninguém. Ficar com “os olhos grelados”, ou os olhos fixos. “Fazer gaiatice”, o mesmo que molecagem. “Cabra fuleiro”, um piadista, gozador. “Mangar de alguém”, ou zombar. “Aperrear”, usado no lugar de chatear. “Pé de pau”, que é árvore. “Pastorar”, de muito uso significando guardar, cuidar de algo. “Cabra macho”, um sujeito valente. Em vez de mau cheiro, catinga. Em vez de comida insalubre, comida reimosa. Carão em vez de bronca, ou repreensão. E a expressão que mais me espantou: Bonito pra chover. É que, nas bandas de lá onde fui criada, um dia chuvoso é feio, triste, e é belo o dia límpido, de céu azul sem uma nesga de nuvem.

Na natureza, fauna e flora, também ocorreram muitas novidades para mim. Logo percebi que quando eu dizia aipim, abóbora, ou fruta-do-conde, as meninas não entendiam que eu estava falando de macaxeira, jerimum, e ata. Lagartixa aqui falavam víbora, ou briba. Catita em vez de camundongo. Guabiru em vez de rato. Cassaco, avoante, punaré. Castanhola em vez de amendoeira. Capote em vez de galinha d’Angola. Em vez de lagarto, calango. E em vez de gato ou cachorro vira-lata, aqui diziam pé-duro, que lá no sul significava um sujeito rude, mal-educado, casca-grossa.

E de vez em quando surgiam as expressões engraçadas, que manifestam o humor cearense, às vezes ingênuo, às vezes irônico: Olha o troco!, que o sujeito grita para quem sai sem pagar. Ou, então: “Bota na minha conta!”, quando alguém quebra alguma coisa ali por perto. Cheguei, fascinada, ao Seu Lunga, que fazia brilhantes brincadeiras com a linguagem.

— Seu Lunga (diz alguém), este é um carrinho
de bebê?
— É carrinho de menino novo, mas se quiser eu derreto ele e boto num copo pra mode beber.

Acabei descobrindo que no Ceará existe uma língua local, ou dialeto, o cearensês. Com literatura e tudo. Cheguei a comprar alguns dos pequenos dicionários que enumeram as expressões desse falar, na maioria divertidas, irreverentes. Nesses dicionários encontramos também palavras belas, como paroara, lebrinar... paroara é o nordestino que vai se aventurar nos seringais do Acre. Lebrina é a chuva fininha. Bulida é a moça desvirginada. Bulir é mexer. E a belíssima palavra “cunhã”, que eu já conhecia de Rachel de Queiroz, aliás, uma guardiã da expressão cearense.

Dia destes, fiquei sabendo de um neologismo, que é o verbo éguar. Eu éguo, tu éguas, ele égua, nós éguamos... E o verbo iracemar, eu iracemo, tu iracemas, ele iracema... Tudo, sempre que possível, falado num sotaque característico do cearensês. Ô corra boa. Marromeno. Macho véi. Macho réi. Laculá. Caba véi. Caba macho. Trocando os esses pelos erres, os vês pelos erres... Ou sumindo com os erres...

Fico pensando, às vezes, por que isso aconteceu tão fortemente por aqui. Talvez tenha começado pelo isolamento histórico — Fortaleza nasceu sem porto, ao contrário de Recife ou Salvador, abertas ao cosmopolitismo, a diferentes linguagens. A capitania do Ceará era cercada por montanhas, o mar sem enseadas mansas para abrigo de naus. Isso deve ter fortalecido o nascimento e a preservação de uma cultura própria, original, sólida, com mudanças mais lentas, que temos em riqueza até os dias de hoje. Também, deve haver um sentimento de honra regional, de querer reconhecimento e respeito.

Deixando de parangolé, ando meio arigó. Ainda não entendi foi a expressão que mais escuto por aqui, “Arre égua!” Não sei se expressa alegria, decepção, surpresa, irritação... Sei que incorporei muitas falas e ando disparando, por aí, de quando em vez, no lugar de Virgem Maria, sonoros Vixe Maria!

Para todos, um cheiro.

espaço do leitor
Denise 31/03/2016 08:18
Adorei...
Nathalia Cardoso 23/02/2016 12:02
Como não amar?
Lia 21/02/2016 11:32
Texto maravilhoso, bem a cara dos cearenses. Parabéns!
3
Comentários
500
As informações são de responsabilidade do autor:

ana miranda

RSS

ana miranda

ana miranda

Escreva para o colunista

Atualização: Domingo

TV O POVO

Confira a programação play

anterior

próxima

Divirta-se

  • Em Breve

    Ofertas incríveis para você

    Aguarde

Erro ao renderizar o portlet: Caixa Jornal De Hoje

Erro: maximum recursion depth exceeded while calling a Python object

Newsletter

Receba as notícias da Coluna Ana Miranda

Powered by Feedburner/Google

O POVO Entretenimento | Ana Miranda