"Uma determinação espiritual." Esta é a relação que o médico, professor e empresário David Negrão Grangeiro afirma ter com o Cariri, terra que seu pai escolheu para ter o primeiro filho. Segundo Negrão ouvia de adultos da família, dois pontos eram bem claros: o primogênito tinha de ser homem e nascer em Barbalha. O desejo concretizou-se em 1972.
Antes de prestar vestibular, acabou indo morar em Recife, onde graduou-se em Medicina. Depois, vieram residências em São Paulo, Recife e Memphis, nos Estados Unidos, e mestrado na capital pernambucana. A volta para o Cariri aconteceu em 2002. Atualmente, é médico do Hospital e Maternidade São Vicente de Paulo, professor da Universidade Federal do Cariri (UFCA) e da Faculdade de Medicina Estácio de Juazeiro do Norte e está à frente da Kariris Empreendimentos. A empresa, que conta com dois condomínios residenciais em Juazeiro do Norte e um em Barbalha, está construindo o Kariris Blue Tower, torre comercial localizada no Crato, com arquitetura inspirada em construções de Dubai.
Além dessas atuações, o médico é padrinho da Aliança da Misericórdia — movimento eclesial com sede na Arquidiocese de São Paulo e presente em mais de 60 cidades brasileiras e em outros sete países. Em entrevista à O POVO Cariri, David Negrão fala sobre a influência da região em sua vida, religiosidade, planos para o Cariri e suas vocações profissionais.
Você nasceu em Barbalha. Como é a sua relação com o Cariri?
Eu compreendo que o lugar onde a gente nasce tem um planejamento espiritual. Meus pais moravam no Rio Branco, capital do Acre, [em uma] época que não tinha ultrassom. Quando eles estavam no Acre, meu pai dizia que o primeiro filho era homem e tinha que nascer em Barbalha. Então, eles passaram 13 dias dirigindo um Karmann Ghia, porque meu pai morria de medo de avião, e eles de fato chegaram aqui [Barbalha] por volta de oito da noite e eu nasci na madrugada do dia seguinte. Então, é uma raiz que eu compreendo muito profunda. Eu nasci em 1972.
A sua infância e adolescência no Cariri tiveram influência na sua personalidade?
Tiveram sim. Eu tive uma infância comum. A gente vivia andando pelos sítios, andando de cavalo, andando de bicicleta, fazendo acampamento, caçando também. E eu acho isso uma coisa muito saudável, tento reproduzir isso, essa situação de contato com a natureza e de liberdade nesse ambiente [no empreendimento Terra dos Kariris, em Barbalha]. Eu aqui, enquanto te aguardava chegar, estava ouvindo os pássaros, porque isso me traz uma serenidade muito grande e, se a gente parar e ficar em silêncio, a gente escuta o canto de vários deles. A gente traz a natureza para dentro do empreendimento. Vários filhotes nasceram aqui. Quero trazer isso para as pessoas, particularmente para os meus filhos. Hoje, eles vivenciam isso tanto aqui dentro quanto nos fins de semana, indo para os sítios. Podemos pensar assim: "Ah, mas isso não tem nada a ver com ser médico ou professor, empreendedor". Mas é a essência da compreensão da nossa vinculação com a região.
Você foi estudar em Recife para fazer a faculdade de Medicina. Por que escolheu Medicina?
Acho que nossa vocação nós escolhemos no plano espiritual. Quando a gente vem para a Terra, a gente vem com as sementes que vão desabrochar quando encontrarmos o solo fértil, como Jesus nos ensinou. Se você nasceu com a semente de ser jornalista, algum evento na sua vida vai desabrochar essa semente. No meu caso, eu acredito que eu nasci com a semente para ser médico e que desabrochou com um brinquedo que eu ganhei dos meus padrinhos de batismo, um brinquedo do Playmobil que tinha uma equipe de médicos com uma sala de cirurgia como foco. Então, essa é a minha memória mais antiga do que eu disse para mim mesmo que eu seria médico.
E por que escolheu seguir pela área pediátrica? O que trabalhar com as crianças representa para você?
Se eu fosse resumir em uma única frase, eu diria que é porque eu sofro da Síndrome do Peter Pan, que enganchou na adolescência. O tempo vai passando e ele não muda, não é? Se você me vir, se não fossem os cabelos brancos, em sala de aula com os alunos, você não distinguiria quem é o professor, quem é o aluno. A minha vocação é trabalhar para as crianças. A escolha passou por vários estágios durante o curso. Eu entrei na faculdade por influência desse padrinho, que era um dos meus dois únicos médicos familiares mais ou menos próximos e ele disse assim: "Olha, David, o Brasil está envelhecendo e você vai ser um geriatra, que é uma profissão de muito futuro dentro da Medicina". Aí entrei na faculdade [e] se alguém me perguntasse no primeiro semestre que especialidade eu ia fazer, diria Geriatria. Foram se passando os semestres, eu conhecendo cada vez mais o ofício de ser médico e aí chegou o momento de fazer estágio concursado. Fui para um hospital chamado Agamenon Magalhães e comecei a conviver com as doenças dos idosos e eu vi que aquilo era muito diferente da minha vocação. Ao mesmo tempo, fui convivendo com as primeiras intervenções cirúrgicas, com as suturas das pessoas que sofrem acidentes, que se cortam. Aquilo foi me encantando. Decidi que seria cirurgião. Quando eu encontrei a cirurgia pediátrica foi como encontrar o amor da vida da gente. Essa paixão cresceu e se transformou em amor. Não imagino a minha vida de um jeito diferente.
Você morou em vários cantos, Recife, São Paulo e Estados Unidos. Como ficou a sua relação com o Cariri nesse período e o que te fez voltar para cá?
Quando eu estava em Recife, eu só sonhava em voltar a morar aqui. Houve um único momento, que foi quando meu pai foi assassinado, que eu fiquei muito triste com a região, não conseguia mais ver a beleza desse céu azul que a gente está vendo hoje. Cheguei a pensar em não morar aqui novamente. Mas, quando eu estava já concluindo a minha segunda residência, recebi um convite para voltar para a região e iniciar meu trabalho como cirurgião pediátrico. O hospital São Vicente iria passar para o nível de hospital terciário e precisava do funcionamento da UTI neonatal para poder credenciar a maternidade como de alto risco. Comecei a atender as crianças daqui, a encontrá-las nas praças, na igreja, nos passeios, nos momentos de lazer. Elas foram apagando aquela imagem ruim que ficou da morte do meu pai e eu fui me reencantando com a região e voltei para cá.
Você disse que a Medicina foi “despertada” em você por um padrinho. Suas relações familiares também influenciaram em outros aspectos da sua vida?
Minha família foi muito desestruturada. Meus pais se separaram e se juntaram várias vezes. Somos seis filhos e fomos criados separados. Fui criado por outra mãe, que na verdade é uma tia biológica [Leda]. Ela me ensinou os valores morais, religiosos. Foi uma mãe que eu considero afetiva e orientadora na formação. Ainda tem uma terceira mãe, que é a mãe cuidadora [Raimunda, que era chamada Mundinha], que fazia mais do que o trabalho de uma babá.
Como percebe a questão da formação espiritual, religiosa, na sua vida?
Eu acho que a coisa mais importante das nossas vidas é compreender que a alma é eterna e vivenciar a vida na Terra, a vida física, com atenção para a vida espiritual. Eu não consigo imaginar a vida distante dessa compreensão espiritual. E isso não é uma coisa de estar rezando no domingo na igreja, não. Isso talvez seja uma parte menos importante do que a maioria das pessoas percebe. Princípio fundamental é vivenciar os ensinamentos cristãos, os ensinamentos da ligação do homem com o pai espiritual.
Você é um dos padrinhos da Aliança de Misericórdia. Como a relação com a instituição começou?
Em um sábado de carnaval, do ano de 2012, a minha mãe foi assassinada por uma pessoa em um surto psicótico provocado pelo uso de drogas. No dia da missa de corpo presente, prometi para ela que eu iria me dedicar às pessoas que se envolviam com drogas. Naquele momento, eu passei a enxergar de uma forma diferente. Antes eu enxergava como uma escolha errada e daquele dia até o dia de hoje eu passei a enxergar como uma doença. Prometi tirar um dia por mês para tentar impedir que essas pessoas se envolvessem com as drogas e para tentar ajudar aquelas que já estavam envolvidas. Nessa caminhada, um amigo meu, que também é padrinho da Aliança, me levou para conhecer o trabalho da Aliança. Passei uma tarde inteira visitando a casa de acolhida, conhecendo as ideias, os propósitos, e eu compreendi que aquilo era o que eu deveria fazer.
Na sua percepção, qual a importância dessas iniciativas?
A minha compreensão, como cidadão e como médico, [é de que as] drogas avançam em uma velocidade muito grande sobre a sociedade. Não tem ninguém imune a essa situação. Na minha família primária, pai, mãe, irmãos, ninguém usa droga, mas as drogas entraram como um furacão nas nossas vidas, através de uma pessoa externa, um vizinho de apartamento que matou a nossa mãe. A gente vive numa sociedade rápida demais, com a tecnologia, e superficial demais. É um ambiente propício para que a pessoa se torne um dependente químico. Ela quer as coisas muito fácil, não sabe esperar, não se contenta com o que tem, quer a felicidade do Instagram, do Facebook.
Mas a vida não é assim. A vida tem seus momentos de dificuldade e eles preenchem uma parte grande das nossas vidas. Se não dermos as mãos, as pessoas de bem, para combater esse avanço das drogas, nós não vamos conseguir controlar isso. Já é o nosso maior problema de saúde pública. Não é mais o câncer, o infarto, os atropelamentos. É o uso das drogas.
Como começou sua atuação como professor e o que significa, hoje, estar dividindo conhecimento?
O ser humano é um ser muito complexo, feito a imagem e semelhança de Deus, então ele tem uma pluralidade de potenciais a serem desenvolvidos ao longo da vida. Desde o início da faculdade, despertei a vocação pela docência. Fiz concurso e fui monitor de várias disciplinas ao longo do curso. Depois, o curso do mestrado me deu um pouco mais de conhecimento, me capacitou para exercer isso como uma profissão. E aí, quando eu comecei a vir morar aqui, coincidiu com a chegada dos cursos novos de Medicina. Fiz a seleção, fui aprovado, comecei a ensinar e estou até hoje. Me esforço para fazer o que posso de melhor pelos médicos que estão em formação.
Além de médico e professor, é empreendedor. Como entrou nessa área?
Não foi nem um pouco planejada. Este condomínio [onde] estamos, foi a nossa primeira obra. Ela começou a nascer quando eu morava em Memphis [EUA]. Tinha um clube de revista, [a partir do qual] discutíamos um artigo científico. Só que isso era feito sempre na casa de um preceptor. Nunca era no hospital. Conheci a casa de praticamente todos os meus preceptores e percebi que todos eles moravam em condomínios horizontais. Comecei a morar aqui [no Cariri] e tentei reunir amigos mais próximos para construir o condomínio juntos. As coisas não avançavam, até que terminei me cansando disso e decidi por fazer o condomínio. Coincidiu que chegou o momento da partilha [da herança do pai] e eu, como filho mais velho, fiquei por último para escolher os bens e ficou a maior parte desse condomínio e uma parte em dinheiro para ser recebida nos anos futuros. Quando terminou [a obra], eu tinha uma dívida enorme. Eu me lembro bem que eu pagava de juros por mês o equivalente a um Ford Ka, que era o meu primeiro carro. Passei um aperto danado, assim, aprendi muito com as coisas que deram errado. Depois de um tempo a vocação já tinha desabrochado completamente, já era uma árvore madura, e aí eu dei continuidade com os outros investimentos.
Quais são seus planos agora?
Entre oito e seis anos atrás, eu compreendi que a minha maior missão na vida era promover o desenvolvimento dessa região, e promover sobre três pilares: a construção civil, que é onde nós estamos atuando; o turismo, que eu venho estudando; e a agricultura, que ficará para um terceiro ciclo de desenvolvimento, quando o do turismo estiver maduro como o da construção está hoje. Eu sonho, então, conseguindo multiplicar por dez o número de turistas que temos aqui. O turismo, na minha maneira de compreender, é a forma mais saudável de promover o desenvolvimento na região, porque nós não estamos falando somente da parte financeira, embora ela seja uma parte básica e, como tal, muito importante. [O turismo] força as pessoas a serem melhores, mais educadas, mais gentis, mais compreensivas com valores diferentes dos próprios valores. Cria um intercâmbio natural alma a alma, profundo.
Qual o projeto para esse começo no turismo?
Eu não posso falar ainda por inteiro, porque [faz] parte da estratégia do negócio manter sob um cuidado, mas eu posso te adiantar que o primeiro deles será a criação de um mundo imaginário, dentro da fantasia. É parecido com o que a gente tem hoje na Disneylândia, mas eu espero, sem nenhuma falsa modéstia, sem pretensão pejorativa com aquele ambiente que é maravilhoso, que a gente consiga fazer um melhor ainda, dentro das características da nossa cultura, dentro da realidade econômica da nossa nação. Acredito que vamos construir um ambiente maravilhoso de volta à criança interior, dar mais força à vida, à criança que cada um de nós tem dentro de si.