Renata Sorrah abre Esta Criança, espetáculo em turnê no País e que encenou em Fortaleza no último mês de novembro, interpretando uma jovem grávida que quer se provar capaz de cuidar do bebê. Nas dez cenas que compõem a peça, é mãe e filha, adulta e criança, grande e pequena.
A complexidade das situações que se sucedem acentua o caráter versátil da atriz, que celebra suas sete décadas de vida em fevereiro próximo tentando compensar com a arte a que continua se entregando seu pessimismo com o mundo.
Na entrevista a seguir, realizada horas antes da estreia do espetáculo em Fortaleza, Renata viaja entre passado e futuro, partindo da infância com o pai berlinense e fazendo apostas sobre qual deve ser a cara dos próximos anos.
Como um personagem de Esta Criança, revive a inquietação dos anos de adolescência nos Estados Unidos, a luta contra a ditadura militar no Brasil e a emoção sentida nos palcos.
O POVO- Seu pai se chamava Peter Sochaczewski, sobrenome que você herdou e transformou em Sorrah. Qual a origem da sua família?
RENATA SORRAH - Meu pai era alemão, berlinense. Esse nome, Sochaczewski, é um nome polonês, de uma cidade que às vezes ficava pra Alemanha e às vezes ficava pra Polônia. Porque quando tinha o Império Austro-Húngaro, era tudo uma coisa só. Então, não tem nenhum polonês, a família do meu pai é toda alemã.
OP - E como eles vieram parar aqui?
RENATA - Meu pai era judeu. Ele morreu no ano passado com 101 anos.
Conheceu a minha mãe, brasileira, que era diplomata, quando estava aprendendo alemão. Ela já falava francês e inglês, mas quis estudar alemão porque ia para Berlim como primeira consulesa. Olha os destinos se cruzando. Ela tinha muito jeito pras línguas e foi aprender alemão com uma senhora, em uma pensão, e meu pai estava lá. Isso foi em 1937, 1938, e meu pai estava justamente hospedado lá. Então, a dona da pensão pediu: “olha, você não quer ajudar o Peter a trazer os pais dele pra cá? Tá tudo difícil na Europa, e a avó dele é uma grande cantora de ópera”. Minha mãe era muito amiga do Guimarães Rosa, eles eram colegas do Itamaraty, porque ele também era diplomata, então ajudaram meu pai. Vieram minha avó e meu avô. Minha bisavó também veio depois. A lembrança que eu tenho deles é tão maravilhosa, porque eu lembro deles sempre amando o Brasil, gostando daqui. Nunca ficaram lamentando a mudança, e olha que eles eram berlinenses, viviam muito bem lá, e aqueles eram anos do auge de Berlim. Eu acho que essa força do meu pai, essa alegria de viver dele, essa coisa com o trabalho, isso passou pra gente, então nós trabalhamos muito, nós todos.
OP - Era uma família artística?
RENATA - Eu acho que sim. Acho que começou com essa bisavó cantora, Frieda Langendorf, e ela cantou no mundo inteiro, tem fotos deslumbrantes. Hoje, tem a Deborah Evelyn, que é minha sobrinha, filha da minha irmã (Suzanna Sochaczewski). E eu tenho sobrinhos, filhos da irmã da Deborah: Thomas Huszar, Alex Huszar e Max Huszar. O Thomas é ator já, fez coisas em São Paulo, é da Escola de Artes Dramáticas (EAD), muito, muito talentoso. O Alex é músico. E o Max pode escolher, ele é um ótimo ator, fez aquele filme À Deriva (do diretor Heitor Dhalia), com o Vincent Cassel. Eu disse que ele podia ser ator, mas o que ele que é ser músico.
OP - Você foi para os Estados Unidos nos anos 1960, no auge do movimento hippie. Como foi essa experiência?
RENATA - Fui para uma cidadezinha perto de São Francisco. Foi muito bom.
Naquela época, ir para os Estados Unidos era bacana, era bom. Fui por um student exchange program (programa de intercâmbio de estudantes), o American Field Service (AFS). Você ia lá e ficava uma ano estudando na casa de uma família. E eu estava na Califórnia!
OP - Já estudava teatro?
RENATA - Não, eu nunca tinha pensado nisso. Eu escolhi teatro por acaso. Na ficha de inscrição, você tinha que escolher as matérias que queria cursar, e eu decidi escolher as que não fossem muito pesadas. E eu botei um xis na opção de drama. Estava marcando meu destino ali. Engraçado, né? Também marquei typing (datilografia), só pra não precisar estudar muito. E aí comecei a fazer aula de teatro e o professor ficou absolutamente encantado. Me perguntou se eu sabia o que iria fazer quando voltasse ao Brasil.
OP - E você sabia?
RENATA - Não! Eu falei que achava que ia fazer psicologia ou ciências sociais.
Ele disse que eu deveria entrar para alguma coisa do teatro, porque me via como uma pedra bruta que precisava ser lapidada. E eu falei, ah, tá bom. Voltei ao Brasil, fiz vestibular para psicologia e entrei na faculdade. No primeiro ano, comecei a fazer teatro amador nos teatros universitários cariocas. Nós estávamos vivendo a época da ditadura, e o Tuca tinha um grupo que pertencia à Ação Popular (AP), uma coisa absolutamente de esquerda. Em São Paulo, eles apresentaram Morte e Vida Severina. No Rio, O Coronel de Macambira, dirigido pelo Amir Haddad.
OP - Como foi voltar dos Estados Unidos, um país onde as liberdades estavam em ebulição, para o contexto de ditadura no Brasil?
RENATA - Foi horrível. Horrível. Mas como nessa época comecei a fazer teatro, entrei no teatro amador, então foi também, pessoalmente, um momento muito libertador. Foi um tempo de descobertas, como se estivesse abrindo uma cortina, “o mundo pode ser assim!”. Era o mundo das artes, quando descobri meu talento -e não sei se posso falar assim -, mas eu sabia que ia ser minha profissão pro resto da vida. E isso foi tão forte… A gente ia pras passeatas em 1968, a gente se colocava, fazia tudo, éramos muito fortes. Tínhamos uma coisa pela qual lutar.
Tudo bem que nos Estados Unidos existia essa coisa hippie, com toda uma mudança de comportamento, mas aqui havia uma luta muito forte, estávamos lutando contra uma ditadura. Era tão forte quanto o que acontecia fora, era concreto, não deixou nada a desejar. Era um momento que alterava o teu DNA. A atriz que sou foi forjada ali, na época da ditadura, lutando contra a censura, contra o Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Eles invadiam os teatros, batiam nas pessoas. Em um dos casos mais famosos, em São Paulo, deixaram Marília Pêra quase nua na rua. Era horrível, mas dava uma força muito grande pra gente.
OP - E qual é a “força muito grande” que move os artistas de hoje?
RENATA - Acho que continua. O mundo tá difícil, tá indo pra direita, agora só falta a França colocar Marine Le Pen no poder. Acho que pra quem é ator, artista, a luta não acaba nunca. Eu fico pensando, se você está em um momento bom, se seu mundo está em paz e você faz um Tchekhov, você está se colocando, porque há essa incógnita de quem somos nós, para onde a gente vai, o que estamos fazendo aqui. São perguntas que vão sempre existir. Então, acho que a luta continua, que a gente tá aqui mais do que nunca para continuar. Fecham as secretarias da cultura, fecham os ministérios, tiram tudo, juntam com o turismo, e continuamos aqui. No Rio, há essa ideia de juntar a Secretaria do Turismo, que é maravilhosa, com a da Cultura, que cuida do teatro, da dança, das artes cênicas. Mas não é a mesma coisa! Você não pode colocar em um pacote só. O teatro é tão importante… Ainda mais nesses tempos de redes sociais e internet. O teatro vem pra te fazer sentir uma emoção ao vivo, com uma pessoa que está em cima do palco. Porque eu não faço aquilo sozinha, eu faço porque você veio me assistir, é uma troca com você. Não vou ficar como uma maluca fazendo qualquer coisa, é tudo pra você. Isso é ouro.
OP - Na TV não existe essa troca imediata. O que te seduziu nesse universo?
RENATA - É. Outro dia fiquei pensando nas cenas do estúdio. Se você fica pensando que muitos milhões de pessoas vão estar te assistindo, se isso fica na tua cabeça, você desmaia, você não consegue falar. Então, o que você faz é para o estúdio, para teu set de filmagem. Para os câmeras, para o boom man, para os colegas. É assim que me relaciono com os atores, os colegas, o diretor, com quem tá cortando, com o figurinista, com todo mundo que tá ali. Geralmente são 40 ou 50 pessoas dentro do set e você atua para elas.
OP - Você acredita que o formato da teledramaturgia está ultrapassado? Como a TV pode concorrer com plataformas como o Netflix?
RENATA - Acho que o formato não está ultrapassada. Pode ser um pouco menor, mas se você lança uma boa história, ela se segura, ainda está em tempo. Quando a história não é boa, então nada é bom, nem a novela, nem o seriado. Nada interessa. Talvez pudéssemos reduzir a duração das novelas, de nove para seis meses. Existe esse boom das séries nós Estados Unidos, e a gente tá correndo atrás para fazer igual. E eu tenho certeza de que a gente sabe fazer televisão como ninguém, a gente entende disso aqui. Muitos anos atrás, quando havia o germe desses seriados, os americanos eram péssimos fazendo dramaturgia, e nós éramos muito bons, sempre fazendo novelas melhor que eles, com nossos melhores atores. A gente tinha Malu Mulher, Plantão de Polícia, que eram seriadozinhos excelentes. Não sei porque o formato não se desenvolveu. Plantão de Polícia era, em sua época, tão bom quanto Breaking Bad. Mas a TV Globo parou de fazer. Malu Mulher era incrível, tocava em temas de racismo, aborto, separação, relações homossexuais, coisas das quais não se falava muito. E a Regina Duarte fazia tudo lindamente. Eram programas que davam banho em qualquer seriado de hoje. Depois tivemos muitas novelas ótimas. Quando a novela é boa, ela é boa. Mas quando é uma b… droga, é horrível, e aí você desliga e não assiste.
OP - Em Esta Criança (peça da Companhia Brasileira de Teatro) você aparece como criança e adolescente, aos 5 e 12 anos. O corpo envelhece de forma diferente no teatro e na TV?
RENATA - Existe uma história conhecidíssima da Sarah Bernhardt (atriz francesa). Ela já tinha seus quinhentos anos, já estava sem uma perna, estava velhíssima fazendo Joana d’Arc no teatro. Quando os juízes perguntavam quantos anos ela tinha, “quel âge avez-vous, mademoiselle”, ela dava uma secada na plateia e falava: 18 anos, “dix-huit ans”. E todo mundo acreditava. Então, o teatro tem essa coisa, você não precisa ter sua idade. Essa criança de cinco anos que faço, foi algo proposital. E eu vejo a criança que tem dentro de mim. Na TV, ficaria esquisito, assim como no cinema. Se bem que tem aquele filme com o cara que vai envelhecendo, envelhecendo, e depois fica moço, moço, moço. O Benjamin Button. O teatro é mais generoso com isso. A ideia do Marcio (Marcio Abreu, diretor) era que eu fizesse uma jovem grávida e depois uma menina de cinco anos. Eu, sentada numa cadeira grande, e meu pai numa cadeira pequenininha. Então, existe toda uma linguagem aí. Na TV, não. Você tem que se aproximar da realidade. Se for diferente, as pessoas reclamam imediatamente.
“Como fulana pode ser mãe de sicrana? Tá muito jovem, muito velha!”. O teatro é generoso, pode inventar, não tem idade.
OP - O teatro faz pensar mais?
RENATA - Eu acho que faz. Ele tem mais liberdade, um bom teatro tem mais liberdade. Mas também, uma boa série, um bom programa de TV, quando abrange esse grande número de pessoas, podem fazer pensar. Durante muito tempo se falou que a televisão era o que unia o norte e o sul do Brasil, como um rio.
OP - Você tem acompanhado com atenção o trabalho de algum diretor de teatro, cinema ou TV?
RENATA - O Marcio Abreu, com quem eu estou trabalhando. Olha que bom! É o melhor que a gente tem. E eu falo isso com o maior prazer. Fico me perguntando com quem eu gostaria de trabalhar com tanta vontade depois dele. O Marcio é dramaturgo, é ator, é diretor, é sério, tem bom humor. Ele verticaliza a obra, vai fundo. É incrível. Ele é bom, muito bom.
OP - Depois de tantos anos de carreira no cinema e no teatro, o que ainda te surpreende e te inspira?
RENATA - Estar trabalhando com o Marcio. E também uma minissérie que talvez eu faça, do Euclydes Marinho, que eu admiro muito.
OP - E o que te apavora?
RENATA - Atualmente, o mundo. Hoje em dia, tenho pensado muito sobre o que vai acontecer com a gente, e isso falando do Rio de Janeiro, onde moro, do Brasil, da América do Sul e de todo o mundo. O que vai acontecer? Tem terrorismo, tem o avanço da direita… Meu Deus, será que a gente não vai aprender nunca a viver em paz, a viver bem com o outro, a aceitar as diferenças, todas as diferenças? A gente já sabe disso tudo, que existe um que é árabe, outro que é judeu, outro que é branco, outro que é preto. Um que é mulher, outro que é homem. Outro que é mulher misturado com homem. A gente não vai aprender isso nunca? Nunca vamos aprender a aceitar as diferenças?
OP - Você é otimista?
RENATA - Não. Não. Não. Mas a gente tem que trabalhar, mesmo sem otimismo. Se cada um fizer um pouquinho que seja - eu na minha rua, nas minhas peças de teatro - já estaremos contribuindo com isso. Nunca faço minhas opções por dinheiro, nunca precisei pensar assim, ainda mais agora. Pergunto se é importante fazer esse papel, se é legal, se estou falando alguma coisa, se vou conseguir tocar as pessoas. É isso.
Perfil
Renata Leonardo Pereira Sochaczewski nasceu no Rio de Janeiro em 21 de fevereiro de 1947. Começou a carreira como atriz no teatro, aos 20 anos. A estreia na televisão aconteceu em 1969, em Um Gosto Amargo de Festa, na TV Tupi. Atualmente é uma das mais populares atrizes brasileiras de sua geração, tendo atuado em novelas como Fina Estampa (2011), A Indomada (1997), Pedra sobre Pedra (1992) e Vale Tudo (1988). Em 2016, uma de suas cenas como Nazaré Tedesco, de Senhora do Destino (2004), foi um dos memes mais compartilhados no Brasil. Na última semana, a cena em que dizia “Tentou me derrubar? Logo eu? Nazaré Tedesco” também viralizou na rede.
OUTRAS VIDAS
Vale Tudo (1988)
Renata vivia a pintora Heleninha Roitman, filha de Odete. Se apaixonava por William (Dennis Carvalho) e enfrentava luta contra o alcoolismo.
A Indomada (1997)
Zenilda era uma enérgica dona de bordel que rejeitava a ideia de se apaixonar por Pedro Afonso (Cláudio Marzo), marido de sua melhor amiga.
Senhora do Destino (2004)
Uma das vilãs mais populares do Brasil, Nazaré Tedesco tinha o hábito de assassinar seus desafetos nas escadarias.
Krum (2015)
Na peça dirigida por Marcio Abreu, Renata interpretava Tudra, ex-namorada do protagonista (Danilo Grangheia), que depois de abandonada decide se casar com outro homem.
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