Michel Laub 02/01/2017

Um escritor contra o "fascismo do bem"

Um dos autores brasileiros mais prestigiados da atualidade, Michel Laub, 43, propõe em seu novo romance uma reflexão sobre empatia, tolerância, internet e identidades
notícia 0 comentários
DictSql({'grupo': ' ', 'id_autor': 16379, 'email': 'henriquearaujo@opovo.com.br', 'nome': 'Henrique Ara\xfajo'})
Henrique Araújo henriquearaujo@opovo.com.br
FOTOS RENATO PARADA

Escolhido pela revista “Granta” como um dos melhores jovens escritores brasileiros, o gaúcho Michel Laub, de 43 anos, costuma escolher o caminho das pedras: seja pela temática de seus livros, seja pelo ponto de vista que assume, o escritor transita por assuntos cuja potência já se experimentou fartamente. É o caso do holocausto em Diário da queda, romance publicado em 2011 que trata de memória e culpa, assuntos correlatos ao extermínio de judeus durante a Segunda Guerra Mundial dos quais Laub extrai uma narrativa profundamente reflexiva. O mesmo procedimento se repete no bem-sucedido O tribunal da quinta-feira, obra na qual se evidencia outra marca de sua literatura: a abordagem da intolerância e da construção de identidades, tudo isso conjugado a uma crítica mordaz ao ambiente virtual onde se formam ondas de fascismo: o clássico ou o do “bem”, conforme descreve um dos personagens do livro. Em entrevista ao O POVO, o escritor fala sobre as dificuldades da escrita num momento de forte apelo ao discurso confessional, presente nas redes sociais, e de concorrência desleal da realidade brasileira, que produz cenas que superam qualquer ficção.

 

O POVO - Um ambulante chamado Índio foi espancado até a morte no dia 25/12 numa estação de metrô chamada Pedro 2ª ao tentar defender uma travesti conhecida como Brasil. Há um cruzamento violento de nomes nessa história trágica. Uma cena dessas, em qualquer romance, seria vista como artificiosa ou inverossímil. A realidade brasileira é um desafio à ficção?

Michel Laub - Só se você achar que a ficção é uma mera reflexão da realidade. Vejo-a mais como uma recriação, e já há desafios imensos no trabalho de um escritor para que ele precise acrescentar mais este. Ou seja, a ficção não concorre com a realidade (nem com a política partidária, nem com a ação social, e assim por diante), embora possa ser um discurso muito potente, inclusive politicamente. Por uma coincidência triste pensando no caso citado, no meu livro há uma cena de espancamento de um travesti. Mas, evidentemente, estamos falando de instâncias diversas.

 

OP - Sim, há a coincidência (entre os dois espancamentos, o ficcional e o real). Como autor, de que modo se sentiu ao ler sobre a tragédia com o ambulante? Acha que há um recrudescimento da intolerância no país ou essa é a natureza atávica do brasileiro, oscilante entre amabilidade e a violência?

Michel Laub - Me senti chocado. Não sei se dá para falar em recrudescimento. O Brasil sempre foi um país violento, nas relações explícitas e implícitas.

 

OP - Identidade e tolerância são temas que talvez percorram quase toda a sua obra. Por que são tão importantes para o seu trabalho?

Michel Laub - Talvez tenha algo de autobiográfico aí. Falo das identidades dos personagens e do modo como o mundo reage a isso (é aí que entra o tema da tolerância). Mesmo que essas identidades não coincidam com a (s) minha (s), a tensão dessa relação entre o que somos e o que o mundo espera de nós sempre esteve presente na minha vida, por vários motivos.  

 

OP - Acredita que haja um déficit de obras que tratem da realidade do país de forma mais direta e não apenas incidental?

Michel Laub - Não. Obras que tratam da realidade de forma direta se propõem a fazer algo que outros discursos - como o jornalismo e a política propriamente dita - podem fazer melhor. “Incidental” não seria uma boa palavra aí, acho. O certo seria dizer que a literatura recria a realidade. Sua potência está nessa recriação, é isso o que a faz transcender tempo e espaço quando é bem sucedida.

 

OP - Seu romance mais recente trata exatamente de tolerância numa era que tem se deparado com mais casos de linchamento, virtuais ou não. Que dificuldades encontrou para tratar de tema tão atual, tendo em vista que a escrita literária pressupõe certo distanciamento?

Michel Laub - Justamente a dificuldade de separar ficção da realidade. Não estou sendo purista nessa insistência, apenas lembrando que um romance é feito de linguagem, estrutura, personagens e assim por diante. Para que ele consiga um impacto semelhante (ou análogo) ao da realidade bruta, é preciso trabalhar esteticamente estes elementos. Meu livro conta uma história que “poderia ter acontecido” na realidade, mas ele só terá valor se o modo de contar for válido literariamente. Se não, uma notícia de jornal contando essa mesma história (um sujeito linchado na Internet por causa de um vazamento de mensagens) já seria o suficiente.

 

OP - O tribunal da quinta-feira simula um julgamento formal, com acusadores e réus, que se estende ao longo do livro. A imagem de um processo em andamento embute uma crítica talvez excessivamente moralista ao ambiente de debates hoje no país. Como avalia nossa capacidade de empatia e de compreender os pontos de vista do outro?

Michel Laub - A empatia sempre foi uma característica rara na humanidade. O que ocorre hoje é que isso é bem mais visível, e o meu livro se propõe a falar a respeito de acordo com o atual contexto tecnológico e político. Não sei qual o sentido que você dá à palavra “moralista”. Se é um sinônimo de ditar regras de conduta ou coisa assim, o que o livro faz (ou tenta fazer) é o contrário disso.

 

OP - Por que escolheu a Aids como uma das metáforas centrais do romance? Que temas gostaria de trabalho num próximo livro?

Michel Laub – Porque tinha a ver com sexualidade e moral. Isso é um campo fértil para falar de tolerância, tanto quanto as redes sociais. Tenho alguns temas que me interessam, mas não necessariamente para um romance. Pretendo ficar um semestre ou um ano sem pensar em ficção, vamos ver se depois disso me animo a voltar a escrever.

 

OP- De alguma forma, O tribunal... dialoga com outro romance recente, Divórcio, de Ricardo Lísias, por envolverem ambos casos de vazamentos/exposição de correspondências íntimas e do linchamento que se seguiu. Concorda com essa proximidade entre os dois livros?

Michel Laub - Não li Divórcio, então não posso falar mais detidamente a respeito. Do que sei sobre a trama, não é bem de um linchamento que se trata, e quem narra é um marido que invade a privacidade da mulher (situação oposta à do Tribunal).


De qualquer modo, e agora falo apenas de mim, a questão em literatura é como se faz o caminho reflexivo.

O meu livro está longe de ser apenas uma trama sobre intimidade e tecnologia. Há toda uma questão do desejo, de liberdade individual em tempos neopuritanos, discutida ali. Por isso o mote da Aids conduz a trama.

 

OP - Há um discurso corrente hoje sobre o “lugar de fala”, que costuma ser bastante rígido quando se trata de compreender pontos de vista emitidos por pessoas cuja condição (social ou política) não lhes conferiria legitimidade para proferir esses discursos. Desse modo, brancos e heterossexuais que escrevam sobre problemas de negros e homossexuais são criticados. Acha que corre esse risco o seu livro?

Michel Laub – Talvez corra, mas esta é uma briga que vale a pena comprar. Se a literatura não for o espaço da empatia, da fantasia (de imaginar mundos que não são o seu), da especulação (de ordem até moral), não acho que ela faça muito sentido. Acho que a questão sempre reside na qualidade do livro, na sua potência estética (e, logo, política). Escrevi tanto o Diário da Queda, que teoricamente tem a ver com uma condição identitária minha (o judaísmo), quanto O tribunal da quinta-feira, que não tem. Mas quem pode saber qual dos dois livros é menos ou mais “inventado”? Isso em si dá legitimidade a um livro?


O escritor mente, essa é a função dele. Se ele for bem sucedido, conseguirá dizer verdades por meio dessa mentira. No caso do Tribunal, a “mentira” é a escolha do narrador, que é um sujeito ambíguo, externo à questão gay, à questão feminina etc. Não acreditar 100% no que ele diz, percebendo suas contradições, já é um modo de relativizar esse problema do lugar de fala.

 

OP - Numa de suas entrevistas, você diz concordar com uma expressão do personagem do livro, que se refere a um “fascismo do bem”. Pode falar um pouco sobre o que seria isso?

Michel Laub - Um modo de ser fascista em nome de valores não fascistas. Ser muito tolerante no discurso e nada tolerante nos métodos.

 

OP - Acredita que o debate na internet está contaminado por esse “fascismo do bem”? Por que acha que o ambiente virtual exacerba as posições, levando a radicalismo?

Michel Laub - Acho que não existe apenas um ambiente virtual. Falo muito do ambiente virtual com o qual eu convivo. É evidente que, se você entrar nesses grupos de adoradores de Bolsonaro (Jair Bolsonaro, deputado federal), é outra coisa, é quase um fascismo bruto, clássico. Esse nome, “fascismo do bem”, é um exagero, mas fala de uma intolerância travestida de tolerância que acontece nessa internet mais progressista. Todos os valores pregados ali são os melhores possíveis. Eu tenho a impressão de que até mesmo nessa internet que defende o Bolsonaro os valores também são os melhores possíveis. Ninguém jamais vai dizer que está pregando a violência pela violência ou a intolerância pela intolerância. Qualquer pregação de não reconhecimento do outro sempre vem em nome de valores nobres, como igualdade, liberdade ou qualquer coisa do gênero. É uma intolerância de métodos em nome de princípios nobres.

 

OP - É uma crítica mais difícil de fazer porque o fascismo mais bem-acabado é, de alguma forma, mais fácil de identificar.

Michel Laub - Sim. Esse fascismo do tipo Bolsonaro não é como cachorro morto, porque estamos falando de pessoas poderosas. Mas, como escritor de ficção que está falando para os seus leitores, não faz muito sentido eu ficar batendo nessa tecla. Todo mundo sabe que elas são intolerantes. Você está falando com as pessoas e elas já concordam. Acho que é mais interessante pegar seu próprio leitorado, pessoas que estão acima dessas questões, que estão realmente fazendo o bem o tempo inteiro, que estão do lado político certo, e expor as contradições.

 

OP - Nossa geração viu a internet nascer como alternativa democrática num ambiente político dominado por partidos e instituições cuja natureza estaria corrompida. Vemos agora que, na internet, é preciso bastante esforço para levar a bom termo qualquer discussão, seja política ou não. Acredita que vivemos uma espécie de perda de inocência em relação ao ambiente virtual?

Michel Laub - É possível. Isso tudo é muito novo, e a discussão acaba indo a reboque da tecnologia, algo que o usuário comum não domina. Uns dez anos atrás eu era muito otimista com a internet. Idem no início das redes sociais. E eu não estava errado, acho: naquele momento, ainda não era possível para alguém leigo como eu perceber o caminho que as coisas estavam tomando. Não havia a percepção do que os algoritmos fazem nessas redes, por exemplo (e nem havia algoritmos como há hoje, ao menos na experiência mais comum de usuário). Da mesma forma, as corporações não tinham vencido totalmente a briga contra a internet livre. Hoje em dia, para muita gente, internet é sinônimo de Google e Facebook (ou alguma rede equivalente). Passa-se 100% do tempo nesses ambientes, com todas as consequências disso em termos econômicos, de privacidade, de diversidade de opções, algo que não ocorria no início dos anos 2000.

 

OP - Como imagina o futuro da rede? Já há obras distópicas que tematizam a cultura do Vale do Silício, como O Círculo. Acha que a tendência é de que as corporações dominem integralmente os espaços, colonizando uma cultura que se identificava com valores libertários em sua origem?

Michel Laub – É tudo muito recente. São 15 ou 20 anos de história aí, e isso é um ciclo histórico muito pequeno.


A gente viu a primeira internet, na qual essas corporações ainda não sabiam como monetizar e transformar em dinheiro esse controle de dados. Era muito mais fácil deixar as coisas soltas, e as coisas efetivamente ficaram soltas. Houve de fato essa grande liberdade. Eu cheguei a pegar isso, uma longa geração pegou isso. Acho que hoje em dia algumas pessoas têm até saudade dessa primeira internet.

 

OP - Essa internet de duas décadas atrás foi fundamental como ferramenta de produção e divulgação de muita gente que começou a escrever junto com você.

Michel Laub – Sem dúvida.


O meu caminho foi um pouco diferente por ter começado já numa editora grande, mas, para boa parte dos meus colegas, se não fosse esse meio de divulgação e de produção, com o barateamento de impressão trazido pela revolução digital, essas pessoas não teriam tido a trajetória que tiveram. A gente não teria tido tantos escritores como temos hoje. Mas, voltando às corporações, não sei se isso é uma tendência que veio pra ficar. É uma tendência pros próximos anos, certamente. Mas a tecnologia muda, e a gente não sabe o que vem pela frente. Dez anos atrás não tinha Facebook, pelo menos não aqui, e a navegação era menos controlada do que ela é hoje. Se olharmos pra trás, a perspectiva que a gente tinha era totalmente diversa da que aconteceu. Eu não imaginaria que tudo iria passar pros gadgets, pros iPhones, que também mudaram a experiência das pessoas, de passar 24 horas por dia ligadas. Isso não era assim. Então, olhar para daqui a cinco ou dez anos é um pouco pretensioso. A gente não tem ideia do que vai vir. Não duvido que apareçam novas tecnologias mais libertárias.

Eu quero crer que também tem muita gente neste lado que está lutando por isso, assim como as corporações estão lutando para transformar a internet num espaço privado, com vigilância total da vida das pessoas.

 

OP - Cada vez mais, do escritor se espera (o mercado, pelo menos) uma interação mais estreita com seu público, seja em festivais, seja nas próprias redes sociais. Numa entrevista recente, Bernardo Carvalho disse que não pensava tanto no leitor enquanto escrevia. Como é no seu caso? Tende a se preocupar com o leitor durante o processo de escrita?

Michel Laub - Penso num leitor ideal, que em geral sou eu mesmo. Ou seja, o que decido que vai ou não para o texto final tem a ver com meu gosto, minha bagagem de vida, minhas expectativas de leitor. Não sou um acadêmico, no sentido de ser especializado em teoria literária ou algo assim, mas obviamente não sou um leigo na área. Essa mistura acaba dando certo, dentro das proporções do tipo de literatura que faço: acabo tendo boas respostas tanto de leitores qualificados quanto de pessoas sem tanto hábito de leitura.

 

OP - Vemos muitas obras hoje serem classificadas como autoficção, uma palavra em si controversa e de contornos pouco claros. Acha que a ficção é sempre uma recriação dos fatos vividos, que o nível de autofabulação é o mesmo, ou esse fenômeno (autoficção) nada mais é do que uma roupagem nova para algo antigo?

Michel Laub - Uma roupagem nova para algo antigo, com adereços que em geral estão ali mais por motivos mercadológicos do que literários. Qual a grande diferença, por exemplo, de o narrador ter ou não ter o nome do autor? Isso em si confere “verdade” a um livro? Há exceções, claro, e eu mesmo já escrevi livros que são classificados como autoficção (ou, mais acertadamente, como autobiografia). Não tenho mais vontade de fazer algo nessa área, mas às vezes depende mais do leitor que de mim. Basta narrar em primeira pessoa, e muita gente já acha que é autobiográfico.

 

OP - Esse boom de literatura confessional (cito o livro mais recente de Julián Fuks) pode ter relação com o egocentrismo ou, como você falou, tem raízes mais fundas em estratégias mercadológicas? Até que ponto a exposição nas redes sociais se conecta com esse tipo de literatura?

Michel Laub – Esse discurso, de maneira geral, é o discurso que você acha nas redes. Então, é um discurso com o qual as pessoas estão acostumadas a lidar. Digamos assim, qualquer post é uma confissão, mesmo que seja uma opinião. É algo muito comum hoje, as pessoas fazem relatos de uma conta que não conseguiu pagar, um taxista com quem ela conversou durante o dia. É uma coisa convencional, da vida dela. A partir disso, ela cria teorias políticas, sociais, psicológicas etc. É um modelo bem comum hoje em dia, e até nem me surpreende que a literatura reflita isso, que os autores escrevam em primeira pessoa. Eu mesmo escrevo. Quando tu pega livros que acabam fazendo muito sucesso nessa área, se o sucesso for merecido, eu quero crer que são livros que têm essa característica confessional ou autoficcional, mas que não estão falando do próprio umbigo, estão falando de algo maior. Você citou o livro do Fuks, ele fala da memória, da ditadura etc. São coisas maiores do que a pessoa ficar contando a sua própria vida. Há uns temas de contrabando ali.

 

Perfil

 

Michel Laub nasceu em Porto Alegre, em 1973. Escritor e jornalista, publicou cinco romances, ganhou os prêmios Bienal de Brasília e Bravo/Prime, foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura, Portugal Telecom e Zaffari/Bourbon e será adaptado para o cinema. É um dos integrantes da edição “Os melhores jovens escritores brasileiros”, da revista inglesa Granta. Diário da queda teve os direitos vendidos para onze países. Também se formou em Direito pela UFRGS em 1996. Chegou a trabalhar como advogado em Porto Alegre.


"Empatia sempre foi característica rara na humanidade.
O que ocorre hoje é que isso é bem mais visível"

"Uns dez anos atrás eu era muito otimista com a internet. Idem no início das redes sociais"

 

BIBLIOGRAFIA


O tribunal da quinta-feira (2016)

A maçã envenenada

(2013)

 

Diário da queda

(2011)

 

O gato diz adeus

(2009)

 

O segundo tempo

(2006)

 

Longe da água

(2004)

 

Música anterior

(2001)

espaço do leitor
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro a comentar esta notícia.
0
Comentários
500
As informações são de responsabilidade do autor:
  • Em Breve

    Ofertas incríveis para você

    Aguarde

Erro ao renderizar o portlet: Caixa Jornal De Hoje

Erro: maximum recursion depth exceeded while calling a Python object

ACOMPANHE O POVO NAS REDES SOCIAIS

Erro ao renderizar o portlet: Barra Sites do Grupo

Erro: <urlopen error [Errno 110] Tempo esgotado para conexão>