artigo 20/10/2017 - 13h54

Ela queria ser livre

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Ela queria ser livre 

Lanny Ferreira

Ela queria ser livre, mas não tinha o domínio de sua própria vida. Era só uma garota assustada, vivendo na sombra do medo de assumir seus próprios sentimentos. Sua mãe queria seu melhor, mas não entendia que para sua filha ''o melhor" não lhe bastava para ser feliz. A garota sempre agiu como se fôra um fantoche. Sua mãe sempre foi a protagonista da vida de uma menina que agia como coadjuvante, ou pior, agia como se fôra a vilã do seu próprio conto de fadas. Qual o problema se ela optasse por não ter um príncipe? E se na sua história de amor não houvesse espaço para um Romeu?

Ela procurava ensaiar as melhores formas de dizer o que se passava dentro de si, mas acontece que seus sentimentos eram confusos até para sí mesma... Explica-los era um trabalho quase impossível.

Outra noite ela lembrou com saudades da sua infância. Devaneou entre seus pensamentos relembrando dos seus primeiros passos, mesmo desequilibrados, sua mãe lhe ajudou em cada queda a levantar e ir adiante. Ela sabia que podia seguir em frente, pois a mão de sua mãe estaria lá caso caísse/precisasse... E ela caiu, caiu tantas vezes... Mas os machucados nos joelhos das quedas de quando jovem, nada se compara a sua alma mutilada atualmente. Sua filha está caída agora e a mãe nem parou para perceber. A pobre garota tem desabado por vezes quando entra no seu refúgio particular e abraça seu travesseiro com força até deixa-lo úmido de lágrimas, como se essa fosse a única maneira de aliviar sua dor.

Essa garota nunca falou das dores do seu coração e dos ferimentos de sua alma com clareza, mas eles existem e os ferimentos expostos ardem cada vez com mais força... Ela os escondeu e os tem escondido até hoje. Todos os dias põe um sorriso nos lábios e finge estar bem, mas seu coração sangra. Ela quase sempre chora sozinha rezando para que no fundo a sua forma de amar seja entendida e como num passe de mágica tudo possa se resolver. Dói, machuca, fere, esconder uma parte de quem ela é.

Ela lembra por vezes de todas as coisas que sua mãe lhe ensinou sobre a vida. Ela está orgulhosa de si por ter aprendido tudo. Hoje ela se tornou uma mulher de carácter e o mérito de tê-la moldado tão bem é daquela que lhe deu a vida. No fundo, bem no fundo, ela só queria mostrar ao mundo que sua sexualidade nunca vai anular nada do que ela é, nada do que aprendeu. Ela sempre teve liberdade para escolher seus amigos, por qual razão é privada do direito de escolher seus amores? Se há reciprocidade no sentimento, se trás felicidade, o que importa quem seja ou de que sexo seja?

Ela só queria mostrar que não está doente e que não precisa de médico ou remédio, ela precisa de respeito. É tão ruim sentir que a sua sexualidade (que deveria ser um detalhe) afeta as pessoas que ela mais ama no mundo.

Ela deixou uma lágrima rolar em seu rosto quando sua memória voltou ao passado e lhe fez voltar ao ensino médio. Lembrou com pesar todas as vezes que chorou na última cadeira da sala rabiscando papéis e fazendo cartas que nunca teve coragem de destinar. Lembrou de quando escreveu em seu diário uma carta para a professora que disse que "ela parecia um menino por viver correndo atrás de bola". Lembrou de quando escreveu para o seu primeiro namoradinho que terminou o namoro porque seus amigos o diziam que ele gostava de uma menina que "parecia menino"... Ela lembrou que sempre foi covarde demais para dizer qualquer coisa, se limitava a chorar e o nó na garganta lhe vazia repensar o que de errado tinha com ela. Em seu diário estavam suas feridas e cicatrizes expostas (mas preferiu jogar fora após ser lido na escola em alto e bom som por alguém que só queria lhe humilhar).

Ela se revoltou ao lembrar de todas as vezes que foi agredida e humilhada por abraçar, beijar ou andar de mãos dadas com quem tanto amava.

Ela sabe que no fundo sua mãe quer lhe proteger e tem medo que sofra outra vez, mas ela não precisa de proteção, ela precisa de apoio. Ela precisa ser feliz sem sentir como se estivesse cometendo um crime. Ela quer que igualmente quando era criança, sua mãe apenas a deixe caminhar sozinha e fique lá, apoiando-a, caso caia e precise. Ela tem se sentido sozinha com tanta frequência. Tem se sentido menos, apesar de saber que ninguém deveria ser diminuída por amar alguém do mesmo sexo. Por vezes se comparou com a prima que trás tanto orgulho a família, mas não é uma escolha ser hétero, assim como ser gay também não. Mas por que as pessoas ainda levam essa idéia retrógrada adiante de pensar que o desvio da heterossexualidade é uma opção?

Sua prima falou de casamento na sala diante de toda a família e todos se animaram vibrando com a notícia, mas com ela acontecia o oposto, tentavam contra sua própria vontade fazer ela voltar para o armário. Sua família evitava o assunto e falar sobre seus relacionamentos era proibido... afinal, "e se os vizinhos soubessem da filha lésbica, o que iriam falar?" ... Sua prima querer casar era motivo de festa, afinal era um homem o felizardo, mas a pobre garota era proibida de dividir suas conquistas amorosas, falar sobre isso era um "desrespeito" afinal era por outra garota que seu coração batia forte.

Ela tem convicção que esconder quem somos rouba a nossa felicidade e mutila nossa alma. De tanto reprimir quem é, acabou se tornando um rascunho mal desenhado de sí mesma.

 

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