artigo 04/09/2017 - 15h26

Passagens e transformações deixam feridas e frustrações

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Passagens e transformações deixam feridas e frustrações

 

Prof. Esp. Renato Custódio 

 

Durante uma vida inteira servimos como mão de obra para sustentar um sistema falido e uma instituição sem moral. Frustramo-nos quando ao olhar para trás se fez, fez, fez e no fim não se fez nada. De que adianta amar se ao se deparar com as intempéries do nosso cotidiano o amor se esvai como água no ralo.

 

Sempre olho para trás e vejo que na medida em que remamos a diante o mar nos leva de volta para a praia, pois ainda somos fruto de uma mentalidade conservadora, egoísta e manipuladora que oprime e abusa dos menos abastados.

 

No alto dos dezoito anos, fui direcionado ao trabalho fabril, filho de metalúrgico, ingressei cedo na labuta em chão de fábrica. A fumaça das máquinas e o som estridente das marretas cortavam o ar como navalhas na carne. Palavrões era o dialeto mais falado, pois a pouca informação e educação não habitavam aquele ambiente hostil.

 

Era comum se deparar com colegas de trabalho exalando álcool logo pela manhã, e logo vinha uma justificativa envergonhada do meu pai dizendo que para aguentar o “trampo” era preciso de anestesia. Perguntei-me várias vezes o que fazia ali, sentia repulsa da situação deplorável daqueles trabalhadores em meio à exploração por meio do patrão, à humilhação por meio da gerência e a indignidade diante da necessidade que os fazia ouvir e obedecer.

 

Durante um período beligerante pelo qual a empresa passava, fora feita uma reunião onde o patrão chorava e dizia que nós não tínhamos necessidade de nos preocupar com a situação da mesma, porque tínhamos apenas uma família para sustentar, enquanto ele tinha a família de nós todos. Engraçado, não me lembrava disso quando assinei o contrato de trabalho, mas sim que aceitara vender a minha força por míseros seiscentos e oitenta e seis reais e doze centavos. Os funcionários comovidos com a situação o abraçaram e tentaram-no acalmar, sem saber que o mesmo apelava para o sentido mais puro de um homem que é manter o sustento de sua família.

 

Tomei uma decisão, vou fazer um curso superior!

 

Me inscrevi no vestibular da faculdade, para uma licenciatura em História, estudei feito um camelo, e por ventura do acaso gabaritei a prova. Partindo daí anos se passaram, e o tão sonhado certificado recebi, pedi as contas do trabalho e para sala de aula corri.

 

Nunca pensei que seria tão humilhado, ficava em atribuições de aula até madrugada a dentro, saí muitas vezes sem nada e com o peso da responsabilidade nas costas, além de ouvir de meu pai que era um imbecil por ter largado o trabalho para cuidar de filho dos outros.

 

Após algumas tentativas consegui aulas próprias do meu componente e daí a primeira barreira. O pagamento.

 

Seis meses se passaram, já tinha pego dinheiro de todos os bancos que me liberavam crédito, a família pegando no pé e as condições de trabalho em sala eram terríveis. Professor professa, o sonho que profetizei para minha vida e carreira profissional estava cada vez mais distante, além do mais, professor não paga contas com ideologias.

 

Não há como ver crianças chorando de fome na escola e ter de ficar inerte, não há como conhecer a família do aluno e sentir vontade de chorar, pois a realidade se coloca como um paradoxo quando comparada a teoria dos estudiosos, que muitas das vezes não cumpriram o papel de professar enquanto professor, formador de outro professor.

 

Caminhando e cantando e seguindo a canção, os anos se passaram e a situação melhorou. Agora, professor em um colégio renomado (particular), salário bom, casado e feliz. Até que um acidente mudou o rumo da minha vida. Na volta de um ensaio na fanfarra da cidade, minha esposa e eu fomos derrubados da moto por um motorista que empreendeu fuga. Sofri poucas escoriações, porém a minha esposa ficou impossibilitada de andar durante uma temporada. Enfim, fui demitido do colégio devido as ausências para cuidar dela.

 

Estaca zero novamente, sufoco, sofrimento, angústias e frustrações me fizeram repensar a vida como docente, que docente é esse que vive uma vida indecente, tendo de lecionar em ONGs por uma cesta básica?

 

O tempo passou e sofremos calados, concursos apareceram e minha esposa e eu conseguimos nos estabilizar na educação.

 

Hoje, me dedico a profissão, pois sempre sonhei com um mundo onde as pessoas pudessem ser mais amáveis e menos egoístas, uma sociedade onde não houvesse um opressor que se deliciasse ao ouvir uma súplica de pai de família implorando por seu emprego, nunca mais ter que ver professores xingando e desprezando alunos, julgando e negligenciando o seu papel em sala de aula, pregando um discurso anticorrupção e sendo corrupto não cumprindo como deveria a função.

 

Somos livres para escolher o nosso caminho, mas ainda escravos de um ciclo vicioso que perdura na consciência conservadora de um povo alienado e tutelado pela classe burguesa que sustenta o Estado corrupto.

 

A Revolução parte da educação, nas nossas memórias olhamos o passado, entendemos o presente para assim consertarmos o futuro, o bom homem não é aquele que dá esmolas, mas sim aquele que incentiva o mendigo a se auto sustentar.

 

A minha Revolução é na sala de aula, e o meu discurso parte de uma ideia onde todos somos iguais e merecedores dos mesmos acessos, e que a raiz da desigualdade parte da premissa particular do MEU e não da premissa universal de TODOS.

 

Não me arrependo das minhas atitudes e experiências registradas na memória, as feridas me fizeram forte, penso que na vida a gente faz, faz, faz e no fim não sabe o que faz. Porém se queremos mudanças, essas devem partir de nós mesmos em prol de outrem.

 

 

 

 

Por: Renato Custódio da Silva

 

Prof. de História na Rede Pública Estadual de São Paulo

 

 

 

 

 

 

 

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