Ronaldo Correia de Brito 01/05/2016

O teatro de Horrores do Congresso

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Nunca fui capaz de perceber as nuances técnicas do distanciamento proposto pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht. De maneira simplificada, o ator deve interpretar sem identificar-se com o seu personagem, numa atitude crítica em relação ao texto. É complicado, não? Li numa entrevista que Brecht descobriu essa técnica observando atores populares na China. Verdade ou não, sempre me impressionou a forma como os Mateus dos reisados caririenses entram e saem dos seus papéis em segundos, abusam da metalinguagem e convidam o público a desmascarar os truques que usam.


E Stanislavski? Ah, o russo propunha o oposto de Brecht, o teatro naturalista em que o espectador sente-se dentro da cena, chora e ri como se fosse verdade o que se representa, numa completa identidade com a farsa. Os atores de Stanislavski estudam os papeis, investigam a memória da personagem e o que possa contribuir para torná-los mais próximos do real ilusório. A criação do falso com aparência de verdadeiro depende do talento de cada ator ou atriz. Vivien Leigh, consagrada pelo filme E o vento levou, especializou-se em interpretar Blanche Du Bois, na peça Um bonde chamado desejo. Ela se identificava com tamanha intensidade à personagem – Blanche, ao final da peça, terminava louca –, que muitas vezes saía do palco para internar-se num hospital psiquiátrico.


Assisti no domingo 17 de abril, ao teatro representado no Congresso Nacional, tentando descobrir em que técnica de interpretação os deputados haviam se especializado. Mesmo se tratando de maus atores, canastrões na maioria, não tenho dúvida de que parte deles se formou no naturalismo de Stanislavski. Desde a criação dos figurinos – paletós pespontados, gravatas verdes, azuis e amarelas, fitas com as cores da bandeira do Brasil no peito e no pescoço, ou a própria bandeira da nação ou do estado de origem envolvendo o corpo como um poncho –, até a maneira de usar o microfone, de se dirigir ao Sr. Presidente da Câmara, de olhar para os lados em busca do melhor ângulo para a tevê ou o click de um celular, tudo era ensaiado. A representação quase sempre grotesca, falsa, seria reprovada por um encenador. Mas, tratavam-se de marcas, truques gastos, poses e caricaturas em que se especializaram nossos atores deputados, alguns repetindo a cena há 40 anos, outros, os mais jovens, se iniciando com desenvoltura nos mesmos cacoetes sórdidos e viciados.


Os senhores e senhoras do voto “sim” excederam-se em invocações ao nome de Deus (não me refiro apenas aos do Estado Evangélico, desculpem, aos da Bancada Evangélica), da família, de mães, esposas, pais, filhos, netos, bisnetos, sobrinhos (e até de um maridão prefeito, que no dia seguinte foi preso por falcatruas), da pátria, da terrinha onde nasceram (os currais eleitorais), numa sucessão de apostasias, proclamações nacionalistas e pedidos pelo fim da corrupção. Constatei que se tratava mesmo de ilusionistas, pois alguns eram indiciados em crimes semelhantes, implorando providências a um presidente da câmara também processado por corrupção. O clima geral de balbúrdia, irreverência, apupos, vaias, palavrões, que eles nem tentavam disfarçar, empurrões, safadezas como obstruir com plaquetas o rosto do votante frente às câmeras, lembrava colegiais em sala de aula, quando o professor se ausenta, e jamais um Congresso Nacional. Que vergonha! Que lástima! Depois ninguém sabe por que somos tão desacreditados, vistos lá fora como um país que não amadureceu na democracia nem na ética, que permanece praticando a política dos expedientes baixos, das sacanagens e desrespeitos. Há maior falta de decoro parlamentar do que as placas exibidas por senhores barrigudos e senhoras desenrugadas a botox, muitos acima dos 70 anos, com a frase: Tchau querida? Que vergonha! Que baixeza!


E os senhores e senhoras do “não”, qual teatro representaram? Lembravam corifeus num palco grego, ou profetas pregando aos fariseus. Havia força verdadeira em suas palavras, apelo para que as lições de um passado próximo não fossem esquecidas no presente, nem no futuro. Nenhum deles invocou o nome de Deus em vão, nem apelou a esposas, filhos ou pais, como fizeram os do “sim”, numa promíscua mistura de espaço público com vida privada. Ao ouvir os do “não”, senti o mesmo abalo que sentia ao escutar os beatos de Juazeiro do Norte, beatos semelhantes ao Conselheiro massacrado, e aos rebeldes dos quilombos.


Os do “sim” alegaram que o Partido dos Trabalhadores dividiu o Brasil em brancos e negros, homossexuais e heterossexuais. O Brasil vivia mascarado por uma democracia racial, que nunca existiu. Dentro do próprio Congresso, os negros que representam 50% dos brasileiros são minoria absoluta. E também escasseiam as mulheres, embora representem o maior contingente de nossa população. E os homossexuais, eles recebem tratamento igualitário, são tratados sem preconceito? Dentro dessa Casa machista e afeita à segregação, a diversidade sexual é demonizada.


Deixei para o final a cena mais estarrecedora do teatro que foi a votação do dia 17 de abril. A dedicatória feita pelo deputado Bolsonaro ao coronel Brilhante Ustra, que durante a ditadura militar torturou a presidente Dilma Rousseff. O horror! O horror! O horror! Já imaginaram se numa sessão do congresso alemão um deputado tece louvores a um exterminador de judeus, ciganos, homossexuais e comunistas? Impensável. O maluco sairia direto para a cadeia. Mas, no Brasil pode. Até garante votos e popularidade a Bolsonaro, numa conjuntura em que avança a direita radical, o nacionalismo irresponsável e fascista, o conservadorismo e a radicalização do ódio entre os partidos que nos governam. E incita o povo que sai às ruas, se fotografa ao lado de policiais, clama pela intervenção das forças armadas e escreve ataques indecorosos na Internet.


Aviso. Erramos

Devido a um erro na publicação da crônica do último domingo, 24/4, trazemos nesta edição o texto correto. A partir de hoje, as crônicas de Ronaldo Correia de Brito deixam de ser publicadas no O POVO.dom

 

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