Ronaldo Correia de Brito 10/04/2016

Memória de Graciliano

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Numa sala da Casa de Cultura, onde funciona o projeto Fafe Cidade das Artes, um ator limpa o assoalho, antes de começar o ensaio. O sobrado de três andares, revestido de azulejos, lembra os do Rio de Janeiro. Em Fafe, no Minho, quase tudo de monumental foi construído pelos retornados, portugueses que vieram ao Brasil enriquecer, no final do século XIX e começo do século XX, voltaram à terrinha e levantaram teatro, clube e residências reproduzindo as nossas. São as casas brasileiras. Nos últimos 60 anos, a migração se fez para a França e a Suíça. O comum agora é a arquitetura desses países, até os telhados de acentuada inclinação, num lugar onde chove bastante, faz frio, mas não tem nevascas.

 

Depois de arrumada a sala, dois palhaços entram para os ensaios. Na sala contígua, o guitarrista Carlos Blanco e a cantora, percussionista e pesquisadora musical Vanessa Muela, de Valladolid, dão forma a um espetáculo. O técnico em cenários e adereços sobe e desce escadas, experimentando seus inventos com os atores. No primeiro andar da casa funciona uma oficina de costura. Fafe é rica em indústria têxtil e o projeto recebe doações de tecidos. No subsolo, se armazenam figurinos e adereços de montagens anteriores, e bonecos de vários tamanhos produzidos por artistas e alunos da rede pública de ensino, beneficiários do projeto.

Fui à cidade a convite da câmara municipal, como palestrante nas Jornadas Literárias de Fafe e no 3º Encontro Pedagógico do Teatro para Infância e Juventude. Aproveitei e conheci o projeto dirigido pelo encenador Moncho Rodriguez, que já desenvolveu trabalhos em Campina Grande, Recife, João Pessoa, Aracaju, Natal e Fortaleza, e nas cidades portuguesas de Guimarães e Povoa de Lanhoso. Brasileiros do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e de outros estados fizeram residência em Fafe, onde prepararam seus espetáculos, recebendo apoio de pesquisa e encenação, além de hospedagem. Artistas da Europa também procuram Fafe para realizar seus trabalhos, o que vem se tornando comum em outras cidades. Eu conhecia residências para escritores, como a de Berkeley, mas desconhecia projetos de apoio à pesquisa e encenação teatral.


No final da tarde, me chamam para ver o que os espanhóis produziram. Carlos Blanco é um ótimo guitarrista e Vanessa surpreende percutindo pandeiros, adufes, colheres, frigideira e até uma minúscula casca de noz. Opino sobre a montagem, sugiro músicas e textos, convidam-me para incorporar-me ao grupo. Enquanto atua como diretor, Moncho Rodriguez fuma sem parar e se ocupa em vários eventos que acontecem na cidade, todos com participação de alunos de escolas e professores. Pompeu Martins entra numa sala, veio escutar um pouco de música. É o vice-presidente da câmara municipal e pelouro da cultura, um político e artista que apostou no projeto e correu riscos por ele.

 

Numa noite fria, pedem que eu cante um aboio. Estamos no Castelo de Póvoa de Lanhoso, onde foi exilada Teresa, pelo próprio filho, Dom Afonso Henriques, Duque de Bragança. Moncho encenou a história da luta entre mãe e filho, nos arredores e dentro do castelo. Há quem nunca tenha esquecido a encenação. A chegada ao local é solene, antes passamos pelas ruínas de uma citânia, antiga aldeia celta. Sentimo-nos comovidos. Eu arremedo um aboio, inspiro-me nos muezins, mas o resultado é modesto.

 

Vozes e idiomas se misturam. Penso no Brasil e sinto-me deprimido. Em qualquer vila ou cidade portuguesa, assim que me apresento, as pessoas se dizem preocupadas com o nosso futuro. São sinceras e afetuosas. Nossos colonizadores gostam do Brasil e parte da riqueza de Fafe saiu daqui. Visito uma escola e uma biblioteca municipais, impressiono-me com a estrutura física e o funcionamento. Desejo o mesmo. O que falta para alcançarmos isso? Portugal também atravessa uma crise econômica, há poucos empregos para os jovens, metade da população mora fora do país e já não pensa em retornar como no passado. Mas, prevalece o investimento em educação e cultura.

 

Deixo Fafe a uma temperatura de 3 graus, encontro o Recife a 35. Na fila para carimbar o passaporte, um empresário reclama da manifestação pró-governo, que se realiza na Praça do Derby. São uns sindicalistas sujos, ele grunhe. Por que o exército não metralha todos? O ódio psicopata me assusta e envergonha. Viro a cabeça e juro que nunca falarei nesse tom irracional. Lembro de Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, refletindo sobre a oferta de dinheiro que lhe fez um capitão do exército, quando esteve preso no Recife: “O oferecimento do oficial tinha sentido mais profundo: revelava talvez que a classe dominante começava a desagregar-se, queria findar.” Enganou-se o mestre? A classe dominante não findou. Como Graciliano, também acho que a desgraça nos ensina muito, sem ela julgaríamos a humanidade incapaz de verdadeira nobreza.


espaço do leitor
Ana Paula Sá 26/04/2016 16:43
Pois é, Ronaldo Brito. Tanto a aprender além-mar, sobre coisas simples e básicas, para as quais insistimos em continuar estúpidos.
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