sustentabilidade 04/09/2017 - 01h30

"Uma roupa chega pronta para você, mas onde ela começa?"

A estilista Flavia Aranha, que adota trabalho manual e tingimento natural em sua marca, conversou com O POVO durante a VI SAM, realizada pela UFC, sobre sustentabilidade na moda
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Gabriela Custódio gabrielacustodio@opovo.com.br
Foto: Camila de Almeida

Foi após uma viagem à Ásia, representando uma grande empresa, que a estilista Flavia Aranha repensou a carreira e buscou técnicas sustentáveis para suas criações. Formada pela Faculdade Santa Marcelina (FASM), em São Paulo, Flavia adotou como pilares da marca que leva seu nome a produção manual e o tingimento natural – com corantes feitos de cascas de árvore, raízes, frutos e folhas. Ao mesmo tempo, realiza pesquisas para desenvolver novos materiais e fibras.

Para manter relações de trabalho mais horizontais e humanizadas, a estilista busca grupos de artesãos de diversos estados do Brasil para atenderem às etapas da cadeia produtiva, como colheita de algodão, fiação e tecelagem. O resultado é um processo mais demorado, que respeita os tempos da natureza e da produção artesanal, e contrário à lógica de produção, consumo e desgaste rápidos do fast fashion.

Em Fortaleza para ministrar a palestra de abertura da VI Semana Acadêmica de Moda (SAM), do curso Design-Moda da Universidade Federal do Ceará (UFC), realizada no último dia 16, a paulista conversou com O POVO sobre a necessidade de uma produção sustentável na moda.

Qual a importância, hoje, de marcas de moda investirem em processos sustentáveis?
É fundamental ter cada vez mais iniciativas nessa direção porque dá força a um movimento de transformação de práticas tradicionais e só conseguimos mudar se trabalharmos juntos. Se uma marca pequena encontra ambiente favorável para fazer parceria com outras, ela ganha mais força e, de repente, consegue mudar algum processo que, sozinha, não conseguiria. Esse movimento é bom para a sociedade, para a cadeia produtiva e para as próprias marcas. Mais do que um reflexo de valores, a sustentabilidade é necessária por uma questão de sobrevivência. Se continuarmos produzindo e consumindo – não só a moda, mas tudo – sem atentar para a questão social e ambiental, não sobreviveremos. Precisamos repensar a maneira de produzir e consumir para pensar no mundo daqui a algumas gerações.


Como você se especializou em técnicas sustentáveis?

Foi muito instintivo. Trabalhei na indústria convencional por alguns anos e, quando tive oportunidade de ir para a Ásia, fiquei muito comovida com o sistema produtivo. Já faz mais de dez anos. Vi de tudo, de crianças a idosos trabalhando. Foi uma experiência muito forte e eu decidi que era importante tentar produzir de outra forma. Uma roupa chega pronta para você, mas onde ela começa? No fim, a gente sempre volta para a terra. É o algodão plantado ou um corante natural. E sempre precisa ter um homem, uma mulher, um ser humano ali. Eu me guiei por uma visão mais holística da moda, interdisciplinar, tentando ressignificar ou investigar todos os elos da cadeia para ter uma relação mais harmônica entre homem, natureza e negócios.

O mundo está voltado para a sustentabilidade em diferentes áreas, como na mobilidade. Na moda, essas iniciativas são reflexo dessa conjuntura?
Acho que, se as pessoas querem mudar o estilo de vida, elas começam [por exemplo] pela alimentação. Começam a querer consumir orgânico, a não querer tomar tanto remédio. Elas buscam uma conexão maior com suas origens e isso desperta questionamentos em todos os âmbitos da vida. Temos também um momento de falência dos processos tradicionais de produção. Por um lado, até vemos [lojas] fast fashion crescendo em alguns países, mas já existe, claramente, uma queda no consumo e no varejo convencional. Acho que isso estimula as empresas a entenderem que precisam reinventar-se, que a maneira que vinham trabalhando já não é viável. Então, acho que uma demanda da sociedade, de querer saber mais sobre o que consome, vai ao encontro de um momento da economia em que os processos não se sustentam mais, inclusive economicamente. Uma hora, os recursos acabam. Tivemos a crise de água… São várias circunstâncias ambientais, sociais e econômicas, principalmente, que fazem com que as empresas precisem repensar suas práticas, reestruturar suas cadeias.

Como você avalia as relações de trabalho presentes na cadeia da moda convencional?
Eu acho que é um sistema falido. A partir do momento em que você trabalha com preços muito baixos, depende das economias que estão em desenvolvimento e explora mão-de-obra para poder ter mais lucro, chega uma hora em que isso vai à falência, porque só é sustentável para um lado da cadeia. Acho que não só quem costura, mas todos os envolvidos,estão cada vez mais saturados desse tipo de trabalho, porque são metas, prazos, lucro, medição de custo… Quem cria também [fica] saturado porque tem que ser criativo e inventar uma coleção a cada semana, tem que ter todos os estilos. Mas essas empresas têm um poder econômico muito grande que, quando aplicado a práticas positivas, gera grandes impactos na sociedade. [Por exemplo,] uma fast fashion disposta a repensar seu fornecimento de algodão orgânico é uma iniciativa positiva, porque vai gerar um impacto grande. Tem seus dois lados, mas acho que a maneira convencional realmente está saturada.


Para suas criações, você busca parcerias com pequenos artesãos. Qual a importância de buscar matérias-primas com esses produtores?
Tem muitas importâncias. A primeira é trazer um vínculo afetivo para o design. Minha intenção é humanizar os processos, os produtos; trazer histórias, memórias e afetos para despertar essa consciência no consumidor. E o artesanato traz particularidades para o design: uma peça nunca vai ser igual à outra. Fora isso, também tem a questão de enxergar a potência do País, do nosso conhecimento, da nossa riqueza cultural, artesanal e da biodiversidade; olhar para isso como oportunidade de desenvolvimento social, econômico e cultural. É possível trabalhar em rede, criar produtos que estimulem a geração de renda, a economia local e o fortalecimento da cultura nessas localidades.

Como a tecnologia pode auxiliar nesses processos manuais e sustentáveis?
Existe a conexão de que o fazer manual é, necessariamente, o único caminho para a sustentabilidade, e eu acho que não. É necessário um conjunto de movimentos que, juntos, atuam em uma cadeia mais sustentável. O artesanal é tão importante quanto as pesquisas científica e tecnológica. O segredo está no equilíbrio. Hoje, [no meu ateliê,] conseguimos fazer nossos extratos [de corante] em escala industrial e isso foi possível com pesquisa e estudo dos processos artesanais aliados ao que temos de ferramenta tecnológica. A tecnologia também é importante para aproximar as distâncias. O Brasil é muito grande e, a partir do momento em que temos programas sociais que promovem inclusão digital, aproximamos e empoderamos artesãos, que passam a ter autonomia para atingirem o mercado. Isso facilita e agiliza processos que, a princípio, poderiam ser muito demorados ou custosos.

Você acha que as faculdades da moda brasileiras estão atentas à sustentabilidade?
Ainda tem uma escola tradicional que foca no glamour, mas a gente vê as faculdades se abrindo para esse tipo de discussão. Tem também cada vez mais pessoas indo para a área de pesquisa e, às vezes, até de inovação científica e tecnológica. Acho que daqui a 10 anos, talvez, conseguiremos enxergar um pouco mais esse movimento porque, no ensino de moda, ele ainda é muito novo. É uma questão de tempo. Vejo que muitos estudantes estão mais conscientes do seu papel na cadeia e querem participar de projetos mais alinhados com seus valores.


Quais são os principais desafios de manter um negócio de moda sustentável?
O primeiro é conseguir criar uma cadeia produtiva sólida, porque, ao mesmo tempo, você tem que criar, produzir e vender, mas também tem que pesquisar e achar novas soluções. Não existem fornecedores prontos, você tem que começar lá do zero. A grande dificuldade é que, normalmente, as empresas que se propõem a fazer isso são muito pequenas e precisam atuar em muitas áreas, o que acaba dificultando que elas cresçam mais rápido e avancem. Outro desafio é viabilizar os processos em escalas pequenas. Por exemplo, para criar um fio, você tem que ter um volume mínimo para uma fiação te atender. Acho que, neste caso, a solução é juntar várias marcas pequenas para ganhar volume e ter força. Acho também que conviver com o capitalismo do jeito que é hoje, tradicional, é sempre um desafio, porque tem algumas questões para poder coexistir, afinal não dá para negar o mercado.

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