Pesquisadores brasileiros descobriram o primeiro coração fossilizado de um vertebrado, na Chapada do Araripe, interior do Ceará. A descoberta foi publicada na revista eLife, na última quarta-feira, 20, mas a pesquisa, coordenada pelo médico José Xavier Neto, começou há mais de dez anos. O achado em um Rhacolepis buccalis, peixe que viveu há cerca de 115 milhões de anos, mostra que a evolução dos seres vivos pode ocorrer no caminho inverso ao que se acreditava usualmente - ou seja, estruturas mais complexas podem ser simplificadas.
"Olhando em detalhes a morfologia do fóssil do coração do Rhacolepis foi possível constatar mais válvulas do que os peixes viventes, que possuem apenas uma válvula", explica José Xavier, nascido no Rio de Janeiro, formado em Medicina pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e atualmente pesquisador do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio). As cinco válvulas bombeavam o sangue para fora do coração, mas foram substituídas por estruturas mais simples que pudessem demandar menos energia do organismo. O mesmo conceito dos peixes de cavernas que perderam a visão ao longo do tempo.
A descoberta está relacionada, essencialmente, à curiosidade do médico, às características ideais de conservação de fósseis na Chapada do Araripe, além de uma tecnologia de raio X especial para a análise dos vestígios. "Os corações chamados de câmara só existem em vertebrados e em moluscos, todos os outros têm uma bomba peristáltica, que funciona semelhante ao nosso intestino. Ficou a pergunta, como você chega de uma bomba para essa câmara tão sofisticada?".
Sem encontrar animais vivos com uma estrutura intermediária, Xavier passou a debruçar-se sobre os registros fósseis, ainda em meados de 2005. "Não existia também nenhum fóssil cardíaco aceito pela comunidade, havia algumas sugestões de estruturas cardíacas, mas nunca nada que fosse capaz de provar que aquilo era um coração", conta.
Foi nas férias em Várzea Alegre, distante 467 km de Fortaleza, que ele começou a trabalhar na procura de fósseis com dois geólogos cearenses - o chefe do Departamento Nacional de Produção Mineral do Ceará (DNPM) , José Artur Andrade, e o diretor-executivo do Geopark Araripe, Francisco Idalécio Freitas. "Eles me alertaram para o Rhacolepis, que é quase tridimensional. Em três fósseis encontrei uma estrutura muito parecida com um coração’’.
Ismar Carvalho (UFRJ), paleontologista que coordenou a pesquisa sobre a descoberta do fóssil da ave mais antiga do Brasil, também integra a equipe de Xavier. Ele confirmou que a estrutura não era apenas um artefato.
Os detalhes minuciosos puderam ser enxergados por meio de microtomografias no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas. Algumas amostras também foram enviadas para a França. "Os detalhes eram fantásticos. Nesse próprio peixinho a gente via camarões dentro do intestino". A certeza de que a estrutura tratava-se, de fato, de um coração, veio somente em 2013. Um ano depois, o estudo começou a ser redigido com a participação de cerca de 19 pesquisadores do Brasil, da França e da Suécia.
Paleontologia
Para Xavier, a descoberta prova que é possível estudar a evolução do coração através da paleontologia e, quem sabe, utilizar esses conceitos para aplicações práticas. "Noções importantes saem de coisas completamente inesperadas. Nosso achado mostra que é possível desfazer válvulas. Se a gente entender isso, podemos operar em sentido reverso, fazer válvulas em um contexto que seja útil", frisa.
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Os fósseis do Rhacolepis foram extraídos, com autorização do DNPM, de cidades como Nova Olinda, Santana do Cariri, Porteiras, Jardim e Crato, no sertão nordestino. O PH ideal da água, combinado à baixa quantidade de oxigênio, são fatores relacionados à preservação dos fósseis na Chapada do Araripe. "Se a água tiver turbulência, já não há fossilização assim. Em alguns fósseis surgem até partes moles conservadas, como músculos e pele", relata o geólogo Francisco Idalécio.
Estímulo à pesquisa
Dando continuidade à descoberta, os pesquisadores devem analisar os processos químicos que produziram a fossilização do coração. Além disso, a construção de uma nova fonte de luz Síncroton permitirá análises mais precisas de fósseis e abre caminho para novos achados em solo nacional. O equipamento, chamado de ''Sirius'', está sendo produzido pelo LNLS, em Campinas, e deve começar a operar daqui a dois anos.
"Entender o que aconteceu desde a morte do embrião pode levar a gente a prever onde acharemos mais fósseis. Existe uma chance enorme de que muitos detalhes possam ser encontrados em fósseis que estão nos museus", diz Xavier.
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