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Entrevista 08/01/2014 - 05h00

Poesia de Mello Mourão o aproxima de Camões, diz professor

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Alan Santiago alan@opovo.com.br
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Em 2007, o professor da Universidade Federal de Goiás, Jamesson Buarque, defendeu tese sobre o poeta cearense Gerardo Mello Mourão. O trabalho analisa a poesia épica do autor e como ele reelaborou o gênero na contemporaneidade.

Natural de Recife, Buarque é também escritor, autor de Novíssimo testamento (UFG, 2004), de outra troia (artepaubrasil, 2010) e de Pluviário Perpétuo (PUC-GO, 2011).

Nesta entrevista, analisa o papel do mito e como o autor ressignificou o épico em seu trabalho. (AS)

O POVO - Como o poeta Gerardo Mello Mourão ressignificou o gênero épico em sua poesia?

Jamesson Buarque - Pode-se dizer que Mello Mourão inventou propriamente uma possibilidade de epopeia em versos para a contemporaneidade – pelo menos em língua portuguesa. Invenção do mar é o exemplo disso. Neste poema-livro, o poeta assume uma voz de nacionalidade correspondente ao período em que o Brasil vive suas comemorações de 500 anos. Animado pelo espírito de consenso, quer dizer, por aquele espírito que por motivos diversos – festividades, críticas, revisão histórica etc. – unia o país, o poeta rememora em versos a tese de que os colonos se associaram contra as invasões no século XVII e com isso fundaram as bases da futura nação brasileira. Embora uma tese comum, em Invenção do mar sua apresentação se anula na distensão do tempo, pois Mello Mourão, pela estratégia estética da colagem de linguagens e espécies poéticas, presentifica o passado, enreda-o em vida histórica e em crônicas de família. Essa invenção não dista, contudo, da relação entre tradição e novidade. Mello Mourão, nesse sentido, pode ser considerado aquele poeta que torna possível o feito épico de Camões na poesia brasileira. Se é verdade que o romance participa mais diretamente do real da vida na forma de narrativa literária e que os tratados históricos e sociológicos participam na forma explicativa, descritiva e argumentativa, também é verdade que Mello Mourão encontrou, em Invenção do mar, como participar do relato da vida nacional pelo canto arquetípico. Ora, a personagem de um romance é uma pessoa de papel, quer dizer, alguém que, se existisse, seria tal qual, pois a personagem romanesca é dotada de psicologia e vive uma socialidade dinâmica propriamente dita. Já a personagem de um épico, como o próprio Gerardo no tríptico Os peãs e como Diônisos em Invenção do mar, é uma imagem, uma figura de mundo, uma representação toda de certo acabamento de humanidade. Na história da poesia épica no Brasil – história esta repleta de obras deste gênero –, há o que o Wilson Martins chamou de fracasso, eu diria, há muito fracasso. Isso porque, em quase todos os casos, falta a condição básica de todo grande épico: as personagens em ação. Embora não tenham psicologia nem vivam uma socialidade propriamente dita, as personagens do épico não são meras naturezas mortas. Tenho convicção de que apenas Mello Mourão soube efetivamente lidar com isso na poesia brasileira.

OP - Como podemos pensar o papel do mito na literatura de Gerardo?

Buarque - Há três dimensões do mito a considerar para sua pergunta: aquela em que ele corresponde a figuras de certo sistema simbólico – como, por exemplo, a conhecida mitologia grega –, outra em que ele corresponde a arquétipos da vida e, finalmente, a que ele corresponde àquilo ou a quem passa a representar algo emblemático do mundo histórico. Na poesia de Mello Mourão as três dimensões têm lugar constante. No poema “Amphion constrói Tebas”, de Algumas partituras, é evidente o primeiro caso; Apolo, como personagem, ao curso do tríptico Os peãs, representa o segundo caso; já D. Dinis (Diônisos), também como personagem, em Invenção do mar, ilustra o terceiro caso. De todo modo, é flagrante em toda a obra do poeta uma espécie de comunhão das três dimensões. Eu diria que o poema “Suíte do couro Ou Louvação do couro” é o melhor exemplo. Neste poema, Mello Mourão narra a existência ou o ser do couro nos sertões nordestinos. No poema, o couro se torna o Nordeste do Brasil, e, por isso, torna-se o nordestino, e eu diria que o brasileiro. O poema, em conjunto, verso a verso ao curso de seus sete movimentos, é um signo mítico, como se o couro fosse uma personagem representativa de um atributo, como se fosse um arquétipo de uma existência e como um símbolo de uma época. Vale lembrar destes versos “O couro estende/ Suas manchas de pêlo sobre/ Matos magros de campina caatinga tabuleiro/ Ravinas e barrancos” que conduzem à imagem própria da geografia do sertão, como se pode observar nestes outros versos: “Couro duro esticado — malhas malhadas/ Secando ao sol ao vento à solidão// De couro é aquele chão aquela chã/ Couro estendido em varas”.

OP - Como o senhor avalia o pensamento que ele traça sobre raízes e genealogia?

Buarque - Julgo que a melhor maneira de entender isso diz respeito ao princípio de épica que é inerente à poesia de Mello Mourão. Sua obra, pode-se dizer, é arte de um genealogista que se dedica ao Brasil em uma dimensão dir-se-ia universal pelo signo do sexo e da morte como fundadores de mundo. Gerardo Mello Mourão também recorre a uma estratégia: a de tratar da genealogia familiar como metonímia da genealogia nacional – e párias, coronéis do passado, pobres, fazendeiros, brancos, pardos e negros desfilam nesse conjunto algo que horizontalizados. Digo que biográfica e enciclopédica é seu canto genealógico. Um povo, o cearense, outro, o brasileiro, e, digamos, uma gigantesca nação, a americana – de toda América, saiba-se – integram o canto de Mello Mourão para assinalar as raízes de cada um de nós que nascemos na América a partir da colonização – e somente existe a América a partir desse tempo, pois antes, o mundo era outro. Evidencia-se nisso, como assinalei anteriormente, um marco de nacionalidade. Tanto a poesia de Os peãs quanto a de Invenção do mar nos faz sentir parte de um organismo de recorrência, e, sobretudo, o poema “Suíte do couro Ou Louvação do couro” traz em síntese esse sentido de raízes e de genealogia, apresentando o todo do Nordeste brasileiro como uma localidade distendida e um mundo extenso. Sobre “O país dos Mourões” e “Peripécia de Gerardo”, Octavio Paz registrou em carta que se trata de uma genealogia americana. A poesia de Mello Mourão, portanto, em uma oração: é poesia das origens. Observe-se também que Invenção do mar consegue ser um tratado de fundação marítima e telúrica do Brasil. Miscelando poemas, atestados de óbito, crônicas e mais uma variedade de gêneros via colagens, o poeta canta o ser próprio das genealogias como destino efetivo das sociedades várias. Isso, não raro, toma corpo em poemas breves, como “Pequena elegia do hospital”, de Cânon & fuga, em que Mello Mourão recorre a elementos de sua biografia a respeito de sua condição de enfermo no Hospital dos Portugueses, em Cleveland, amparado por um amigo, pela esposa, pela filha e pelos dois filhos, com a mesma condição enferma de seus avós, materno e paterno.

OP - Existia uma pulsão absolutamente universal na poesia dele. Ainda assim podemos dizer que por sua conexão com o sertão, ele era um autor eminentemente sertanejo?

Buarque - Não podemos dizer que há muito de sertanejo nem que há pouco de sertanejo na poesia de Mello Mourão. Há o sertão em sua medida. A leitura de “Suíte do couro Ou Louvação do couro” nos mostra que Mello Mourão foi um poeta de consistente formação erudita, mas também muitíssimo versado nas tradições da poesia popular, bem como na vida interiorana e rural nordestina. “Rastro de Apolo”, do tríptico Os peãs, apresenta em seu nono movimento um cordel intitulado “Vida e feitos de Apolo”, à maneira de como é comum a respeito de Lampião na cordelística brasileira. De imediato, observa-se aí uma simbiose entre aquilo que pode ser tomado como sertanejo e erudito. Além disso, o mundo telúrico do sertão cearense lembrado e lido por Mello Mourão – decerto mais lido do que lembrado –, bem como sua verve genealógica, que o levou às raízes nordestinas interioranas de formação do Brasil compõem um quadro marcadamente sertanista. Contudo, desde o trato estético – como aquele correspondente à colagem, conforme já destaquei, e também o verso prosaico – até as reflexões de perfil filosófico algo que platônico e heideggeriano sobre a morte, a recorrência de figuras e enredos da mitologia grega e da Bíblia, assim como a convocação detalhada e cuidadosa de diversos eventos da história ocidental tiram Mello Mourão de qualquer restrição, não só sertaneja ou sertanista, como de qualquer outra.

OP - Como o senhor analisa a interferência que os posicionamentos políticos de Gerardo eventualmente tiveram sobre a literatura que ele fazia?

Buarque - À primeira vista: negativamente. Quer dizer: o perfil político de Mello Mourão, durante muito tempo, nadou adversamente à história não só política, mas também intelectual brasileira. Quero observar que digo isso jamais porque sou propriamente adversário a qualquer forma de nacionalismo e demais ideologias à direita, pois, do contrário, eu não teria escrito uma extensa tese a serviço de propagar a poesia de Gerardo Mello Mourão nem teria prestado o depoimento dado nesta entrevista até a pergunta anterior. Digo pelo que enunciei de partida: o poeta nadou adversamente à história política e intelectual brasileira. Observe, contudo, que o nacionalismo integralista de Mello Mourão não era parente do nacionalismo de Getúlio Vargas nem da Ditadura Militar, pois, como é sabido, o poeta foi vítima de ambos. Por outro lado, poetas igualmente integralistas, como Cassiano Ricardo, tornaram-se canônicos. Mas isso, decerto, decorre do Modernismo. A despeito da apologia a Mello Mourão por parte de Drummond e de Houaiss, bem como do ensaio “A Literatura Brasileira em 1972”, de Antonio Candido, sua pergunta está imediatamente ligada à tese de Assis Brasil quanto ao desconhecimento que se produziu sobre a poesia de Gerardo Mello Mourão no país. Há quem pense, de maneira bastante equivocada, que isso também se deveu à formação de esquerda da intelectualidade acadêmica brasileira. Ora, se nossa intelectualidade acadêmica fosse efetivamente de esquerda, teríamos outro país. Como observei, os dois estados de exceção da história política brasileira tomaram Mello Mourão como adversário, e tais estados não foram de esquerda. A mentalidade liberal nacional também nunca o levou em conta senão negativamente, a exemplo de José Guilherme Merquior. Note também que os três apologistas que assinalei estão historicamente inscritos no socialismo – e sobre isso, também pode se acrescentar a amizade de Mello Mourão com Pablo Neruda. É importante entender que a histórica política e intelectual brasileira é voltada para a assimilação do liberalismo, que tem no indivíduo o princípio e o fim da ordenação social. A poesia de Mello Mourão não atende a esse princípio, e, para tanto, basta observar que ela é genealogista. Vale acrescentar que esse genealogismo supera aquele romântico, do indianismo, ou seja, aquele nacionalismo que tem no mundo autóctone a raiz de formação do Brasil. Sabemos todos que a formação do Brasil decorre de lutas entre grupos humanos distintos e de um processo muito complexo de miscigenação. Tanto uma coisa quanto outra está na poesia de Mello Mourão, e por isso ele recorre à formação telúrica, rural e interiorana do povo brasileiro a partir de sujeitos reais em vida pública e privada efetiva. Por sua vez, contudo, Mello Mourão não esteve na época certa e no lugar certo com a poesia esperada. Ele é diferente demais da poesia nacional e sua raiz romântica, como acabei de observar, é variada. Seus poemas mais significativos são demasiadamente extensos para serem antologizados – e isso conta muito mais do que se pensa. Já seus poemas mais breves, em geral, são aqueles que recorrem muito diretamente à mitologia grega, e isso exprime um ar classicizante muito desprezado pela poesia brasileira desde o Modernismo, pois neste país, estranhamente, confundiu-se poesia erudita ou de verve clássica com poesia parnasiana. Retomo: negativamente, mas por conta do liberalismo e, sobretudo, dos dois estados de exceção que tomaram nosso poeta como inimigo.

OP - Qual o senhor considera o maior legado de Gerardo para a literatura brasileira?

Buarque - A obra toda. A invenção épica de sua obra. Invenção do mar, que foi devidamente reconhecido por quem lhe atribui o Prêmio Jabuti. Seu diferencial genealógico, sobretudo em relação ao Romantismo, que, de resto, é base de toda nossa história poética. Em particular, “Suíte do couro Ou Louvação do couro”, que deveria constar de todas as antologias da poesia brasileira, pela capacidade de síntese ao dar a imagem do sertão nordestino pela imagem própria do Nordeste na imagem do Brasil no todo de toda a América, porque dá a saber do couro como signo formador de nossa civilização e de civilizações mais.

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