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Julio Cortázar, assim como Jorge Luis Borges e Gabriel García Márquez, é um dos mais conhecidos escritores de língua espanhola. Entretanto, ao contrário de outro igualmente renomado, Miguel de Cervantes, espanhol, Cortázar não é geralmente identificado como representante de uma identidade portenha ou argentina. É muito comum que ele seja reconhecido como escritor latino-americano, sem que se faça referência ao seu local de nascimento, Bélgica (anedoticamente, ele dizia, inclusive, que o seu local de nascimento foi consequência do turismo e da diplomacia), ou à pátria de seus pais, Argentina. Em termos literários, não acredito que o autor fizesse questão de construir uma identidade portenha, argentina ou até mesmo, em alguns momentos, latino-americana. Ele sempre buscou um universalismo literário.
Na epígrafe a Rayuela, e em francês, Cortázar cita o autor Jacques Vaché, que em uma carta a André Breton escrevera: “nada mata mais rapidamente um homem do que se ver obrigado a representar um país”. Segundo Luis Harss, com essas palavras o autor teria percebido que o problema não estaria na impossibilidade de adaptar-se a um país, e sim na incapacidade de aclimatar-se ao universo. O argentino teria dito, ainda, que usava a frase de Vaché ironicamente: “acredito que se percebe no que escrevi, no sentido de que jamais me considerei um autor autóctone”.
Nova narrativa
O autor é reconhecido como um dos representantes do boom narrativo latino-americano, ocorrido no final da década de 1960 e marcado principalmente pela publicação de Cien años de soledad, do colombiano Gabriel García Márquez. Segundo o crítico uruguaio Ángel Rama, o boom teria sido um fenômeno de expansão editorial que tornou vários autores latino-americanos conhecidos tanto no subcontinente quanto mundialmente. Para o crítico, Cortázar, assim como outros, deveria ter suas obras destacadas como uma nova fase da produção do subcontinente que dialogava e promovia as gerações anteriores e por isso se estabelecia como um sistema literário. Essa nova fase, para Rama, constituiria o que ele chama de “nova narrativa”.Tomada de consciência
O fato de não buscar exatamente uma identidade portenha, argentina ou latino-americana não significa que em uma fase de sua vida não tenha sido um autor politizado. A história de vida de Cortázar explica esse fato. Ele começou seus estudos universitários em Buenos Aires e teve de abandoná-los por questões econômicas. Em 1944, durante um período, foi professor universitário e entrou em confronto com as ideias peronistas. Renunciou ao cargo quando Perón ganhou as eleições presidenciais. Ele explicava que preferiu entregar o cargo antes a esperar que lhe tomassem por discordâncias políticas.
Eduardo Jozami argumenta que a discordância de Cortázar com o peronismo se dava não só no âmbito político, mas também estético. O autor não estaria de acordo com encenação da vida pública.
Pode-se dizer que foi em 1961, quando esteve em Cuba, que aflorou de modo mais evidente na literatura sua preocupação com questões sociais e políticas. Ele mesmo explicou que se deu conta do “vazio político que havia em mim, minha inutilidade política. Desde esse dia tratei de documentar-me, tratei de entender, de ler”.
Integrou comissões contra os crimes das ditaduras, viajou para a Nicarágua e escreveu sobre a revolução sandinista. Em 1971, assinou juntamente com vários intelectuais de renome mundial uma primeira carta a Fidel Castro pedindo explicações ao governo cubano sobre a prisão do poeta cubano Heberto Padilla, acusado de promover atividades contrarrevolucionárias. Entretanto, uma segunda carta foi enviada por um número menor de intelectuais e ele se absteve de assinar.
Ángel Rama, ao tratar do que entende pelo boom literário e dentro do contexto da polêmica da esquerda diante do caso Padilla, indica que em 1972, em um congresso, Cortázar afirmou sobre o fenômeno: “...isso que tão mal se chamou boom literário latino-americano parece-me um formidável apoio à causa presente e futura do socialismo, quer dizer, à marcha do socialismo e a seu triunfo. O que é o boom senão a mais extraordinária tomada de consciência por parte do povo latino-americano de uma parte de sua própria identidade? (...) No fundo, todos os que por ressentimento literário (que são muitos) ou por uma visão míope da política de esquerda qualificam o boom de manobra editorial esquecem que o boom (já estou começando a cansar de repetir) não o fizeram os editores, e sim os leitores, e quem são os leitores senão o povo da América Latina? Lamentavelmente não todo o povo, mas não caiamos nas utopias fáceis. O que importa é que haja setores que estão se expandindo vertiginosamente e que tenham conseguido o incrível milagre com o qual um escritor de talento da América Latina, que nos anos 30 tivesse difundido com uma imensa dificuldade uma edição de 2.000 exemplares de repente se transforma em um autor popular com romances como Cien años de soledad, ou La casa verde ou qualquer romance que estamos lendo e estão sendo traduzidos no mundo inteiro.”
Jogo literário
Assim como os autores chamados oulipianos (integrantes da Ouvroir de Littérature Potentielle), que formaram um grupo de pesquisas e experimentações literárias, Cortázar também se envolveu nesse propósito. Ele também buscava em sua obra literária apresentar a questão do jogo. O próprio romance Rayuela – em espanhol, o nome da brincadeira infantil da amarelinha – promove essa proposta de diálogo lúdico com o leitor. No jogo, como sabemos, quem brinca procura alcançar o céu. Uma referência, talvez, de modo lúdico, à situação pela qual passava a América Latina em 1963, ano da publicação.
Essa seria uma das muitas possibilidades de leitura de Rayuela. Muitas interpretações das obras do autor são promovidas por seus leitores amadores e profissionais. Um exemplo é o tão estudado conto “La casa tomada” [A casa tomada], no qual as interpretações variam desde a abordagem psicanalítica até a politica, sendo a casa uma metáfora ora de um útero materno, ora da Argentina.
Sem dúvida, a literatura que Cortázar produziu é de caráter experimental, procura e cria um leitor cúmplice - disposto e capaz de entrar em seu jogo, que envolve arte combinatória, jogos de palavras, metaliteratura, por exemplo.
Para Pablo Martín Sánchez, haveria uma verdadeira sinergia literária entre os oulipianos e Cortázar, apesar de nunca ter sido declarada. Ao que tudo indica, eles chegaram a convidá-lo a integrar o grupo, mas o argentino teria recusado, por não lhe parecer conveniente “integrar um grupo que não fosse político”. De todo modo, assim como as obras do grupo, a mais conhecida de Cortázar, Rayuela, apresenta-se como um romance fragmentário, onde a combinatória é presente desde o início, quando é feito ao leitor o convite à leitura e são demonstrados caminhos que ele pode seguir.
Cinquenta anos depois da publicação de Rayuela, concordo plenamente com Rama que o fenômeno do boom possibilitou o conhecimento e o reconhecimento do valor dos autores da América Latina, entre eles Cortázar. Sua obra como um todo e a de outros promoveram um novo momento da literatura do subcontinente, que ainda está em vigência, dialogando com outras obras e leitores do mundo todo. Deste modo, não foi apenas um fenômeno passageiro de vendas de livros, e por isso a denominação “nova narrativa” é mais pertinente.
Os vários leitores que encontro da obra de Cortázar, mas principalmente de Rayuela, e especificamente meus alunos de literatura hispano-americana, mostram que essa é uma obra que instiga à leitura e a releituras. Sem dúvida, Rayuela terá fôlego para prosseguir nesse diálogo, por muitos e muitos outros cinquenta anos mais.
Roseli Barros Cunha, professora-adjunta do Departamento de Letras Estrangeiras e do Programa de Pós-Graduação em Literatura Comparada do Departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará.
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