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Izabel Gurgel
jornalista e diretora do Theatro José de ALencar
Talvez estejamos sob o efeito de uma anestesia coletiva. “Socorro, não estou sentindo nada”, diz a canção de Arnaldo Antunes. A audição é uma das possibilidades dos sentidos, do sentir. Ouvir, escutar... Sim, talvez estejamos anestesiados. Falamos tão alto, em quaisquer lugar e hora, que incorporamos no cotidiano o não ouvir, o não escutar. Nem a si nem ao outro.
Penso no chegar em casa, às vezes na madrugada, conversando alto, rindo, batendo porta. Ou entrar no cinema e falar ao celular para saber o lugar em que está sentado o alguém com quem marcamos o filme. Ou, ainda, o alarido de aniversários nos restaurantes em nome de uma alegria que parece ser surda. Somos também legiões de fiéis aos gritos, extraviados talvez em um mundo do qual os deuses se retiraram.
Como tornamos banal a zoada constante? Como permitimos a audição obrigatória de música no ônibus, no táxi, no elevador, no supermercado, na praia, no restaurante, na loja, na sala de espera? Porque concordamos com o direito de aumentar o volume?
Aumentamos o som. Amplificamos a potência. Para não ouvir. E cuidamos de fazer das crianças aprendizes aplicados. O fotógrafo Jacques Antunes fala de uma pedagogia do barulho e aponta o ruidoso mundo dos trenzinhos borrando um final de tarde à beira-mar. Baixa o som, Pateta!
Sensibilidades comprometidas, o não-silêncio pode nos dizer sobre como estamos a viver uns com os outros. Daí a preciosidade de práticas como ir ao teatro, que requer um certo silêncio para se realizar. Pessoas que não se conhecem fazendo assim uma espécie de conspiração para que algo aconteça. E correndo o risco de nada acontecer. Juntas, criam o espaço e o tempo em que o teatro se realiza: no entre o intérprete e o espectador. Os intérpretes produziram o que pode fazer vibrar no encontro com a plateia, ela própria também compondo, em estado de criação. O silêncio como matéria-prima.
Sim, o silêncio é eloquente, é cheio, vivo. Lembro do espetáculo Ivánov, do Teatro Máquina, na Juvenal Galeno, no Centro, em janeiro último. A partir do texto de Tchékhov (1860-1904), a encenação migrava pela casa do poeta e nos oferecia cristais sonoros como o farfalhar das folhas da mangueira no pátio interno, a música de Ayrton Bob Pessoa ao piano, o balançar de uma taça em equilíbrio precário na bandeja a nos lembrar que, em meio à fúria da vida, feito vidro, somos passíveis de quebra em um tempo tão curto quanto um piscar de olhos. Como vidro, também cortamos.
No silêncio, talvez, resida a possibilidade maior de fruição. Do que quer que seja, para além do bem e do mal. Silêncio como campo de cultivo. Tente lembrar de alguns momentos chamados especiais nas nossas vidas. Talvez você se dê conta de que, quando ocorreram, não havia nada melhor do que o silêncio para acolhê-los. Momentos com os quais a memória, ficção que é, monta um mini-documentário para exibições intempestivas nos mini-museus sem firmeza das nossas alegrias e tristezas.
Cito um silêncio favorito. Uma comida com pessoas queridas, uma mesa cuja simples visão banqueteia os sentidos. Um quase torpor agradece o júbilo silencioso do corpo vivinho da silva com o festim de sabores, cores, texturas, temperaturas, cheiros. Um instante de silêncio e habitamos a eternidade. Ainda que o eterno não seja para os humanos.
Silêncio é mais vasto do que ausência de barulho. Diz, sobretudo, da qualidade da escuta. Gosto muito de música para topar a produção-difusão desclassificada a que nos obrigamos. A canção do ex-Titã diz muito sobre nossas demandas, individuais e coletivas, na Fortaleza que não escuta.
Como é possível que estejamos a nos tornar mais grosseiros, cada um de nós, em meio à ficção coletiva que é uma cidade? Como topamos não ouvir o mar vivendo em uma cidade praieira? Que diabo de cidade é essa que não faz da possibilidade de silêncio do Passeio Público a maior dádiva do lugar? Até quando vamos estar no Theatro José de Alencar vendo espetáculos atravessados por paredões de som, cano de escapamento aberto, rugido de motor de ônibus? E topar pregação religiosa com amplificadores de alta voltagem na Praça José de Alencar, impedindo as rodas de artistas de rua como o palhaço Colorau?
Mas quem precisa de paredão de som quando quase toda a orla faz da polifonia uma experiência pobre e restrita? E quando temos um Centro que é uma caixa amplificadora, dando ressonância à sinfonia desastrosa que está a compor a cidade toda, dos bairros nobres à chamada periferia? Chama-se Arpão uma das raras barracas da Praia do Futuro que não tem música ambiente nem ao vivo para nossos ouvidos mortos. Silêncio parece cutucar com vara curta a cidade-onça, de presente roto, na qual Fortaleza vem se especializando em ser. Às onças, desculpem-nos a indelicadeza.
Sim, o título da canção de Arnaldo Antunes é Socorro!
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