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O POVO: Por que somos seduzidos pelo horror?
Carlos Primati: O horror, como gênero, tanto na literatura quanto no cinema e em outras artes, funciona, em sua maneira mais básica, como uma válvula de escape, por meio do que chamamos de catarse, de experimentarmos emoções extremas de pavor, perigo, suspense e horror, porém de maneira artística e como entretenimento, estando realmente seguros, mas podendo vivenciá-las de uma maneira que eu diria que até nos fortalece o caráter. Em níveis mais profundos, o horror é uma das maneiras mais complexas e amplas de se discutir valores, de investigar os limites da alma humana, da maldade, da violência e terror; ensina a lidar com a perda, nos mostra o valor da indignação, de contestar as regras, de não aceitar a morte - ainda que seja apenas de maneira filosófica ou ideológica. O horror, por muitas vezes se valer do sobrenatural e do surreal, permite múltiplas visões artísticas, de maneira que as imagens e situações representadas num filme podem ser metafóricas e simbólicas; não é preso à objetividade do drama, do filme policial ou de ação, por exemplo, gêneros nos quais esperamos uma lógica realista. O horror não se prende ao mundo como o conhecemos, ele prefere reinventá-lo para nos oferecer hipóteses de um outro mundo, seja ele melhor ou pior.
OP: Entre os vários subgêneros do cinema de horror, qual deles mais te agrada? Por quê?
Primati: Gosto de praticamente tudo que existe no horror, justamente por mostrar essa gama de possibilidades, mas o meu subgênero favorito é o horror psicológico, porque ele mexe com a mente humana e sua capacidade de criar monstros e fantasmas. O horror psicológico, onde mais se sugere do que mostra, é a consequência direta do Expressionismo Alemão, o movimento artístico que mais me interessa dentro da história do cinema, e que influenciou, entre outros, cineastas como Alfred Hitchcock, Roman Polanski e Darren Aronofsky.
OP: Quais os grandes clássicos do horror que todos deveríamos assistir?
Primati: Uma lista justa teria que contemplar filmes de todos os estilos, origens e períodos, mas para mencionar apenas alguns que são de fato essenciais, eu citaria Psicose (1960), O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (1962), O Bebê de Rosemary (1968), A Noite dos Mortos-Vivos (1968), O Exorcista (1973), O Massacre da Serra Elétrica (1974), A Profecia (1976), O Iluminado (1980), O Silêncio dos Inocentes (1991), Pânico (1994) e A Bruxa de Blair (1999), todos filmes que não apenas causaram grande impacto no gênero, mas também lançaram novas tendências e deram origem a subgêneros ou ciclos. Alguns filmes são menos óbvios e não tiveram o mesmo impacto no grande público, mas não posso deixar de citar obras como O Mensageiro do Diabo (1955), As Diabólicas (1955), Os Inocentes (1961), O Homem de Palha (1973), Inverno de Sangue em Veneza (1973), Suspiria (1977), Canibal Holocausto (1980) e Pelo Amor e Pela Morte (1994), cada um oferecendo, à sua maneira, visões diferentes do horror, indo do poético ao puramente violento.
OP: E Dos grandes filmes contemporâneos, quais você citaria?
Primati: O cinema de horror atual não está vivendo um momento de "grandes" filmes: o cinema hollywoodiano há praticamente uma década tem vivido de refilmagens, continuações, reboots, crossovers, prelúdios e franquias diversas. Filmes que fazem sucesso, como Annabelle e Invocação do Mal, de fato pouco oferecem de novo, apenas um entretenimento esquecível. A Colina Escarlate, de Guillermo del Toro, é um filme mais bonito do que propriamente bom. Mesmo assim, alguns bons filmes têm chamado a atenção do público interessado no gênero, quase sempre mais baratos e vindos de outros países, fora dos EUA, como o austríaco Boa Noite, Mamãe!, que eu nem acho tão bom, mas fez bastante sucesso; o holandês Borgman, o mexicano Aí Vem o Diabo, o australiano O Babadook, a engraçadíssima comédia de vampiros O Que Fazemos nas Sombras, com produção da Nova Zelândia; alguns dos raros filmes americanos do gênero a causar algum burburinho recentemente foram Você É o Próximo e Corrente do Mal. Uma coisa boa no horror é que ele envolve uma legião de aficionados, o que faz com que produções pequenas acabem encontrando seu público por meio de compartilhamento de informações e experiências. Em outras palavras, por menor e por mais obscuro que um filme possa ser, ele acaba encontrando seu público de qualquer maneira, e vice-versa. É o que mantém o horror como um gênero vivo e pertinente, muitas vezes tendo que brigar com as grandes produções deste mesmo gênero, as quais, ironicamente, na maioria das vezes pouco acrescentam ao imaginário do horror.
OP: Sobre o A Bruxa, você pôde ver o filme? Qual sua opinião sobre ele?
Primati: Sim, vi o filme na Mostra de São Paulo, no dia 1º de novembro (dia seguinte ao Halloween, quando ele foi exibido pela primeira vez no Brasil). Foi uma sessão histórica, o cinema lotado e aparentemente todas as pessoas completamente absortas pela história e por aquela experiência cinemática. O filme causou um grande impacto em mim, sob vários aspectos: além de artisticamente impecável e com um elenco excepcional, ele lida com um dos meus temas favoritos, que é o terror gerado pelo fanatismo religioso e pela crença cega que aprisiona e enlouquece as pessoas. É um filme sobre fanatismo cristão, mas também sobre repressão sexual, sobre fracasso pessoal, sobre a hostilidade da natureza e o homem se autodestruindo a partir de suas próprias regras intolerantes. É também um filme corajoso por não hesitar em se mostrar favorável ao satanismo, mesmo numa época de tanta vigilância católica e evangélica, mas o satanismo dele também pode ser compreendido como uma metáfora de liberdade pessoal e sexual: o filme mostra, acima de tudo, o desabrochar sexual de uma adolescente e como a família dela entra em pânico e histeria religiosa diante das manifestações "diabólicas" da menina. Desta maneira, é um filme feminista, libertário, provocador. É uma metáfora de um problema que vivemos ainda hoje (não é algo de séculos atrás): atribuir a maldade do mundo às mulheres livres, ou a qualquer ser humano que queira viver à margem de convenções sociais, morais ou comportamentais. Para mim, A Bruxa é um clássico imediato, já merece um lugar de destaque entre os meus favoritos de todos os tempos, e me traz uma satisfação ainda maior por ser produzido por um brasileiro, o Rodrigo Teixeira, da RT Features, que investe em cinema de gênero também no Brasil (ele fez, entre outros, Quando Eu Era Vivo, do Marco Dutra; o cinema de horror brasileiro é meu objeto de estudo e acompanho de perto este cenário). Li críticas incrivelmente belas sobre o filme, inclusive de muitos cinéfilos amigos meus, mas sei também que muita gente está saindo revoltada do cinema, porque foram assistir a um filme que lhes metesse medo de maneira convencional, mas A Bruxa não é um filme de situações fáceis e soluções óbvias, previsíveis. É normal que muita gente não goste de se sentir desafiada ou provocada a rever seus conceitos de vida, por um simples filme, mas é essa a principal força do horror. Sei que esse filme pode causar um grande impacto e mudar a vida de muita gente - para melhor. É uma epifania, por que não? Quem prefere filmes de horror que lhes ofereça o conforto de um mundo sempre em harmonia, há muita coisa convencional no mercado para suprir isso. Essa é uma das belezas do gênero: o horror pode ser tanto conservador e conformado quanto rebelde e contestador.
OP: O cinema de horror vive um bom momento? Qual a era de ouro dos filmes de terror?
Primati: Por alguns filmes que citei anteriormente, podemos dizer que ainda tem muita coisa boa surgindo. Mas no geral, é um mercado acomodado com franquias consagradas, refilmagens etc. O horror, como gênero cinematográfico, teve alguns ciclos importantes: o primeiro foi na década de 1930, com o lançamento de Drácula e Frankenstein, que consagraram os primeiros ídolos do gênero, Bela Lugosi e Boris Karloff. Depois o gênero teve outros bons momentos quando Alfred Hitchcock fez Psicose, praticamente inventando o horror moderno, e mais tarde quando O Exorcista transformou o horror num gênero lucrativo, chegando a ser indicado ao Oscar nas principais categorias. O horror continuou tendo momentos de altos e baixos, mas voltou a ser popular com O Silêncio dos Inocentes (pouco depois Francis Ford Coppola fez sua versão de Drácula e Kenneth Branagh fez Frankenstein), e mais importante ainda, quando Wes Craven deu voz às mulheres em sua saga de slasher pós-moderno revisionário Pânico, nos anos 1990, que atraiu um público muito mais amplo para o gênero, ao ponto de ainda hoje sentirmos as consequências dessa popularização do filme de horror.
OP: Você ministra cursos sobre cinema de horror e sobre a obra do Hitchcock. Quem é o público dessas oficinas? O que essas pessoas buscam?
Primati: Sim, tenho vários cursos sobre cinema fantástico, indo desde o Expressionismo Alemão até a Ficção Científica, inclusive sobre a produção de cinema fantástico no Brasil. O público é o mais amplo possível, desde meros apreciadores de filmes que querem entender um pouco melhor e aumentarem seu repertório neste assunto, quanto estudantes de cinema que ou querem ser cineastas, ou teóricos sobre a arte cinematográfica. Até hoje só tive experiências maravilhosas com os meus cursos, sempre conhecendo gente nova e interessada em pensar o cinema, o que sempre renova minha esperança em que esse tema jamais deixe de ser discutido de maneira divertida e inteligente.
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