[an error occurred while processing this directive][an error occurred while processing this directive] A rede de dormir | O POVO
ANA MIRANDA 19/04/2015

A rede de dormir

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Pois me diga se existe alguma casa no Ceará, uma só casa, ou apartamento, ou cabana, um casebre de taipa que seja, uma casa de ricos ou uma latada de pobres, onde não tenha rede de dormir. Em todas, alguma parede há de ter um armador, um gancho, ou cordas descendo de um esteio, e ao menos uma rede pendurada, em sua paz, em sua calma, em sua modorra gentil. Às vezes a rede é no quintal, à sombra de uma fronde, ao frescor da brisa, às vezes num alpendre, dando um ar de tardes sonhadoras, fingindo que avida não tem pressa. E será que tem?


Mas lá está ela, em todas as nossas casas cearenses. Mesmo nas que têm camas, naquelas velhas fazendas, nos sobrados do interior, muito dono da casa deixa a cama vazia e dorme na rede. Até em Fortaleza já vi algum amigo deixar a cama, para se amoldar na rede. Claro, a cama nos obriga a uma inquieta adaptação. A rede toma o nosso feitio, repete, dócil e macia, a forma de nosso corpo. Ela é “acolhedora, compreensiva, ondulante, acompanhando, morna e brandamente, todos os caprichos da nossa fadiga e as novidades imprevistas do nosso sossego”, diz o belo texto de Câmara Cascudo. É para todos, homens e mulheres, velhos, crianças ou jovens; e, para um neném, a rede é a sensação de flutuar dentro da barriga da mãe. Só não sei como é a delícia de se fazer amor numa rede, com uma vontade de preguiça e vaivém. Não foi numa rede que o poeta Carlos Drummond experimentou pela primeira vez o amor? Imagino quantas destas pessoas que vejo andando na rua foram concebidas numa noite de amor na rede. Dizem que a rede forma uma gente forte e sadia. Dormir em rede, eu acho, deve deixar a pessoa mais calma, mais leve, talvez mais amigável. Se for assim, está explicada a meiguice cearense.


Às vezes branca, ou de pano cru, de cipó, fibra, algodão, às vezes colorida, florida ou xadrez;umas mais frescas, umas mais quentes, umas caras, umas mais simples, umas que são verdadeiras obras de arte, rebordadas, feitas à mão, com varandas preciosas... Mas, sempre, bonitas, sempre dão um ar de vida boa, de depois do almoço, de noite morna e embalada por prazeres. Um ar de tempos passados.


A rede é mais antiga do que o Brasil, já aqui Pero Vaz de Caminha encontrou numa oca “uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam” os índios. Botou-lhe o nome de rede porque achou parecida com rede de pescar. Na rede, ao lado de uma fogueirinha, esses nossos antepassados dormiam sem cobertas nem roupas. Deitavam nus marido e mulher na mesma rede,cada um com os pés para a cabeça do outro. Os caciques, como tinham muitas mulheres dormiam sozinhos e, quando desejavam, iam se deitar com a esposa que lhes parecesse, diz frei Vicente de Salvador em 1627. E lá vem a rede história adentro.


Durante muitos anos, séculos, ela foi não só para dormir, mas para transportar. Atavam a rede nos extremos de uma vara, e ali se deitava a sinhá,levada às costas de escravos que sustentavam cada um no ombro o extremo do pau de rede, que era uma espécie de cana maciça de Angola, muito resistente. A rede também servia para enterrar gente pobre, para consolar o além. E mais: um viajante dos séculos passados não ia sem a sua rede, não havia coisa mais cômoda, era uma cama que podia ser levada nas costas ou no lombo do burro, em forma de uma bola de pano;e de noite de baixo das estrelas, em algum rancho perdido no sertão, a fiel companheira se abria para acolher o viajante cansado de caminhar, de cavalgar. Era uma extensão do corpo. Uma casa volante. Está em praticamente todos os relatos de viagens.


Pois eu nunca aprendi a dormir em rede, sou daqueles que perderam esse gosto, desde menina, quando fui levada para o sul. Não é fácil dormir a noite toda numa rede, para quem não praticou esse costume. Uma poesia diz que dormir em rede é o mesmo que amansar cavalo. É preciso saber a inclinação certa, deitar-se atravessado de forma a ficar reto, saber como se bota o travesseiro, esticar o lençol... Já dormi, umas ocasiões. Acordei mil vezes durante a noite, me revirava, procurava a posição, sentia dores nos ombros, nos quadris, mas acordava com uma sensação de que tinha mais liberdade. Podia até viajar pelo sertão.Todavia, por um instinto qualquer, talvez umas saudades impressentidas de alguma rede que embalava a vovó quando menininha, o meu neto mais novo é mestre nessa arte. Mesmo criado lá longe, do outro lado do hemisfério, ele prefere dormir na rede do que numa cama. Descobri, assim, que dormir na rede pode ser um misterioso dom de herança.


ANA MIRANDA



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