[an error occurred while processing this directive][an error occurred while processing this directive] As nossas mulheres coca-colas | O POVO
Ana Miranda 07/10/2012

As nossas mulheres coca-colas

Eram moças de família, que tiveram a ousadia de namorar os soldados norte-americanos
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Lá vem Cyres Braga, ah Cyres Braga, a deusa flutuante que move com languidez o corpo suntuoso, de curvas naturais envoltas em jérsei negro, seios e quadris numa espécie de balé erótico, pés divinos calçados em altíssimas sandálias, um olhar opaco, quente e úmido. Cyres era a encarnação das deusas do cinema, exalava o fascínio e a personalidade de Dolores Del Río, o ímpeto apaixonado e sensível de Maureen O’Hara,o exotismo ardente de Maria Montez, numa figura ao mesmo tempo selvagem e angelical como Linda Darnell, um “belo animal”, uma Eva no jardim do paraíso. Os homens ficavam imobilizados a olhá-la, a respiração suspensa, apaixonando-se, ou já apaixonados. Todos paravam, velhos ou moços, mulheres ou crianças, ficavam em silêncio, mudavam de calçada, faziam mesuras, algum afoito lançava um fiu-fiu. Lá estava o nosso Marciano Lopes, em êxtase, anotando em suas memórias o “passeio da Afrodite”.


“Não olha, menino! É uma coca-cola!”, dizia a mãe, puxando a orelha do rebento. Não se podia nem falar em coca-colas, o assunto era tabu.


As coca-colas eram moças de família, mas de espírito arrojado, irreverentes, que tiveram a ousadia de namorar os soldados norte-americanos instalados numa base aérea em Fortaleza, durante a Segunda Guerra Mundial, no começo dos anos 1940. Tidas como imorais, desafiavam os costumes de uma cidade ainda ingênua e conservadora, enfrentando a própria família e ignorando as maledicências que lançavam contra elas. Algumas eram de famílias tradicionais, e a maioria, de classe abastada ou média. Tinham educação escolar, vestiam-se com apuro, possuíam recursos e eram destinadas a um bom casamento. Bem versadas nos costumes europeus e norte-americanos, porque liam revistas como A Scena Muda, e assistiam a filmes charmosos em que as mulheres fumavam languidamente, deixavam entrever seus corpos, entregavam-se aos braços de galãs, e tinham vidas livres e quase sempre escandalosas, as coca-colas se comportavam como essas estrelas despudoradas. Diz Marciano Lopes que o apelido vem do fato de elas terem tido a exclusividade de tomar o refrigerante americano que era um símbolo daquele país aliado. Também, algo de que se tomava o conteúdo e se jogava fora o frasco. Um produto fabricado em série, de sabor estranho, e descartável.


Os encontros entre as coca-colas e os soldados aconteciam, em geral, no belo cenário do Estoril, onde os soldados faziam suas festas. “Uma festa que parecia não ter fim”, diz Marciano, “quando, nas madrugadas, de longe se viam as luzes e se escutavam os cantos e os risos de alegria esfuziantes de uma juventude que queria, antes de tudo, viver”. O lugar era chamado antes de Vila Morena, e passou a se chamar Estoril porque havia um famoso cassino na cidade portuguesa com o mesmo nome. O Estoril cearense foi transformado num cassino. Os militares ali jogavam, bebiam e dançavam abraçados a suas coca-colas. Provavelmente houve casamentos entre essas moças e soldados, ou casos de gravidez e abandono. Dessa época deve vir o costume de batizar crianças com sobrenomes ianques, usados aqui como prenomes: Lincoln, Washington, Roosevelt...Os cabelos louros e olhos azuis deixaram saudades. Verdade é que nada desse fenômeno das coca-colas foi documentado, quase nem mesmo comentado em jornais, e elas foram jogadas no oblívio. As antigas coca-colas hoje ficariam rubras diante de alguns costumes das moças da cidade, que andam de shorts na rua, usam minúsculos biquínis nas praias, dançam ao som de músicas atrevidas, namoram sem compromisso. As coca-colas anteciparam os anseios das mulheres de hoje: o desejo de liberdade, a emancipação.


E a linda, sensual Cyres Braga, que marcou época em Fortaleza? Conta-nos Marciano, em seu livro de memórias, Royal Briar, que ela estrelou um filme de Raul Roulien, intitulado Jangada. Ator e diretor de teatro e cinema, Roulien foi o primeiro brasileiro a atuar em Hollywood, onde, dizem, teria “descoberto” Rita Hayworth e Ginger Rogers. Deve ter percebido o potencial de encanto da nossa Cyres para ser uma musa do cinema. Mas ela estava, mesmo, destinada ao anonimato: os negativos arderam num incêndio do estúdio, assim como o copião, a cópia bruta que serve para a montagem. E a superprodução, com cerca de oito mil figurantes, que contava a luta dos jangadeiros contra a escravidão negra, desapareceu. Cyres mudou-se para o Rio de Janeiro, onde decerto deixava sem ar os cariocas que a viam passar, com “seu andar ondulado e seu olhar de mormaço”..

 

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