[an error occurred while processing this directive][an error occurred while processing this directive] O Lunário perpétuo | O POVO
Ana Miranda 20/05/2012

O Lunário perpétuo

Era um livrinho editado em Portugal desde 1703, escrito pelo matemático espanhol Jerônimo Cortez
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Nos nossos sertões não havia quem não consultasse o Lunário perpétuo. O lavrador, o comerciante, a cozinheira, a moça apaixonada, o poeta, mesmo quem não soubesse ler ia atrás do Lunário, que chegava aos lugares mais remotos desse mundão sertanejo, viajando no lombo dos burros, nas algibeiras de padres, nas arcas de mascates. Estava ali nos panos da rede de dormir, nas escrivaninhas, nas gavetas, nos armários, ao lado dos fogões a lenha, ao pé de uma árvore...


Durante dois séculos foi o livro mais lido nos sertões do Nordeste, diz Câmara Cascudo. Era um livrinho editado em Portugal desde 1703, de autoria do matemático espanhol Jerônimo Cortez, expurgado pela Santa Inquisição, e traduzido em português. Lunário é um calendário que divide o tempo pelas fases da lua. Perpétuo, porque os seus prognósticos eram tidos como eternos, para todos os reinos e províncias, como se o conhecimento fosse algo imutável. O Lunário perpétuo do sertanejo falava sobre um amplo painel de interesses do cotidiano, como previsões do tempo, advertências aos lavradores em suas sementeiras, ou conselhos de veterinária. Dava ideias sobre como construir um relógio de sol, ou como saber a hora pela posição das estrelas. E distribuía conhecimentos gerais, ao gosto da época, sobre as complicadas ciências da astrologia, rudimentos de física, vidas de santos e papas, explicações sobre eclipses, os efeitos da lua sobre o mar ou como reconhecer sinais da chegada de uma peste, da carestia, de ventos, ou da seca. Era um livro mestre para cantadores, que usavam os capítulos de “cantar teoria”, para aprender gramática, história, doutrina cristã, e fazer consultas sobre países da Europa, nomes de capitais, ou lendas e seres da mitologia. Eles decoravam “letra por letra”, e dali retiravam diversas frases e ditos curiosos, que passavam de boca em boca, entre sertanejos, e se enraizavam. A expressão história de trancoso, por exemplo, tão sertaneja, vem de um lunário onde constavam textos de um dos primeiros cronistas portugueses, Gonçalo Fernandes Trancoso, que comungava com a tradição de Chaucer e Boccacio.


“Não existia autoridade maior para os olhos dos fazendeiros, e os prognósticos meteorológicos, mesmo sem maiores exames pela diferença dos hemisférios, eram acatados como sentenças”, diz Câmara Cascudo. O fato de ensinar a como agir em caso de terremotos, ecos do terremoto de 1755 que destruiu Lisboa, ou em caso de maremotos, onde nem havia mar, e outras catástrofes naturais, ou os dias bons para pesca, os Dias de Peixe para os marujos quase tão distantes do sertão quanto a própria lua, pouco importava. Tudo era assimilado, acreditado e seguido. Se alguém morria, ia-se ao Lunário para obter cantorias fúnebres. Para uma festa religiosa, consultavam-se no Lunário as rezas adequadas. Dúvidas sobre uma receita culinária? Ansiedade sobre a vinda de um noivo? Indecisão diante de uma escolha? Surgia uma doença, uma dor? Plantar ou não plantar, feijão ou milho? Tudo estava nos lunários perpétuos. Digo os lunários perpétuos porque as edições eram anuais. A cada edição, e a cada avanço do conhecimento, o livro ia sendo atualizado, incluindo as datas em que caíam as festas mudáveis, levando os sertanejos a adquirir um Lunário todo ano. E ali ficaram registrados muitos dos costumes e das mentalidades desses dois séculos. Por exemplo: “Quando o bicho ou cobra entrar no corpo de alguma pessoa, que estiver dormindo, o melhor remédio é tomar o fumo de solas de sapatos velhos, pela boca, por um funil, e o bicho sairá pela parte de baixo: cousa experimentada”.


Ainda hoje a leitura dos lunários é um fascínio. Capistrano de Abreu, que apregoava sua descrença absoluta em bruxas, padres e filósofos, admitia que costumava consultar o Lunário sobre desígnios dos astros. Muitos cantadores leem antigas edições, para versar seus desafios em gestas imemoriais. E o extraordinário artista Antônio Nóbrega disse que tudo o que ele aprendeu, as boas toadas, cantigas de curandeiros, aboiadores e cantadeiras, os choros, músicas de banda cabaçal, ponteados de violeiros, pifeiros e “chorões”, seus passos, gingados e mogangas de sambadores, dançarinos e brincantes, tudo isso forma seu lunário perpétuo pessoal. Imagino que muitos preciosos lunários estejam esquecidos dentro de velhos baús, nas cidades do interior cearense. Vale a pena vasculhar.


ANA MIRANDA é escritora cearense. Autora de Boca do Inferno (1989), Desmundo (1996), Amrik (1997), entre outros.

 

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espaço do leitor
Helder 26/02/2014 16:56
Boa tarde, quanto vale um livro original do lunario perpetuo lunario e prognostico perpetuo para todos os reinos e provincias por jeronimo cortez, valenciano reformado e muito acrescentado por antonio coutinho porto livraria chardron de lello& irmao editores 1901 aguardo resposta, obrigad
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