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15/11/1997 14/12/2012 - 08h00

Heloísa Vilhena de Araújo: Pesquisa e Devoção

A diplomata Heloísa Vilhena de Araújo explica como se tornou uma pesquisadora exclusiva de Guimarães Rosa e compara a trajetória de Riobaldo com as etapas percorridas por Cristo
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Detalhe da página do Jornal O POVO, publicada em 15/11/1997
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Jornal O POVO, 15/11/1997

 

Autor: Rodrigo de Almeida

 

A diplomata Heloísa Vilhena de Araújo explica como se tornou uma pesquisadora exclusiva de Guimarães Rosa e compara a trajetória de Riobaldo com as etapas percorridas por Cristo

A voz suave e o jeito tranqüilo de falar deixam nítido o "lado diplomata" de Heloísa Vilhena de Araújo. Atualmente trabalhando no setor internacional do Ministério da Educação, por trás dessa voz e desse jeito há uma devota e incansável pesquisadora de Guimarães Rosa. Ela conheceu Rosa no Itamaraty. Bem, conheceu aí o diplomata, porque com o escritor, Heloísa só veio ter contato mesmo por volta de 1973, ao voltar de um posto em Moscou e ficar hospedada na casa de uma amiga enquanto a sua mudança não vinha. Foi ali que ela leu Grande Sertão: Veredas e, a partir de então, não se cansou mais de ler e de estudar a vida e a obra de Guimarães Rosa. A dedicação, diga-se, tornou-se exclusiva.

Recentemente, explicou a sua relação com o autor de Sagarana e Corpo de Baile. Nela, Heloísa se vale de um título de um ensaio do pensador inglês Isaah Berlin, "A Toupeira e a Rapousa", retirado de um antigo poema grego. É mais ou menos o seguinte: a raposa sabe muitas coisas, já a toupeira sabe uma só, uma coisa grande. Heloísa diz que é assim, como a toupeira. Autora de livros como A Raiz da Alma e A Pedra Brilhante, que tratam da obra de Guimarães Rosa, Heloísa também escreveu sobre o Guimarães diplomata, num livro editado pelo Ministério das Relações Exteriores e Fundação Alexandre de Gusmão.

O mais polêmico ensaio de Heloísa Vilhena é, no entanto, O Roteiro de Deus. Nele, a pesquisadora põe em destaque o aspecto mítico-religioso de Rosa na trajetória de Riobaldo, o protagonista de Grande Sertão: Veredas, em direção a Deus. Uma caminhada que, segundo ela, repete as etapas percorridas por Cristo. Heloísa também aponta uma interpretação do personagem que, segundo ela, passa por um constante "engrandecimento" ao longo da vida. Para Heloísa, Riobaldo atinge, no final de suas aventuras, uma estatura elevada, um estágio superior.

De acordo com sua tese, em Guimarães Rosa e Grande Sertão: Veredas, podem ser encontrados três em um: o Guimarães-personagem, o Guimarães-escritor e o Guimarães-homem. Entre outras coisas, Heloísa se vale de declarações do próprio: "o escritor deve ser o que ele escreve" ou "a língua e a vida são uma só coisa". A divisão, segundo a sua tese, não pode mascarar a unidade entre o homem, o que faz e a sua obra; estão todos "indissoluvelmente ligados". Os três são um. Ela repete, assim, a simbologia da trindade cristã.

Foi sobre essas coisas que o Sábado procurou Heloísa por telefone para conversar. Uma conversa rápida, entre uma preparativo e outro para uma viagem ao exterior. Afinal, vida de diplomata deve ser assim mesmo.

Sábado - Logo depois que a senhora conheceu Guimarães Rosa, num almoço ele lhe perguntou se a senhora costumava rezar. E a senhora disse que não, segundo afirmação sua, no auge da sua fase herege. Ai ele disse: "Ah, pois eu rezo sempre, porque tenho medo de cair na loucura". De lá para cá a senhora se tornou uma especialista em Guimarães Rosa. Eu lhe pergunto: essa afirmação dele sobre a reza lhe influenciou na hora de comparar, por exemplo, a trajetória de Riobaldo, em O Roteiro de Deus, como um caminhar em direção a Deus, como uma "imitação de Cristo"?

Heloísa Vilhena de Araújo - Eu era bem jovem, tinha uns vinte e três anos, tinha acabado de entrar no Itamaraty e ele já era um Embaixador antigo. Mas ele vinha sempre conversar com a gente no restaurante, sentava na mesa, era muito simpático. Nessa afirmação, ele estava dizendo alguma coisa que na época achei estranho mas não dei muita importância. Só depois de muito tempo, quando eu já estava interessada na obra é que me lembrei dela. E aí notei essa relação dele com a reza. A reza para ele é uma situação de contemplação, de desligamento um pouco das preocupações do mundo e uma concentração, eu acho, em Deus.

Sábado - A senhora disse que muito tempo depois veio a se interessar pela obra dele. A partir de que momento houve esse interesse e por que ele acontece de forma tão dedicada?

Heloísa - É porque as coisas tocam a gente pessoalmente. Eu acho que nunca fazemos nada que não seja uma coisa que não nos fale muito profundamente. Uma coisa dentro da gente que às vezes a gente mesmo não sabe o que é. Mas dez anos depois, quando eu já tinha estado três anos no Consulado Geral em Paris e três anos em Moscou na nossa Embaixada, eu voltei para o Brasil e fiquei na casa de uma colega minha esperando minha mudança chegar de Moscou. Ela teve que fazer uma viagem grande pelo Itamaraty e eu fiquei sozinha. E ela tinha vários livros e eu, na ausência dos meus livros e das minhas coisas, peguei pra ler Grande Sertão: Veredas. Foi uma coisa muito emocionante pra mim, porque eu notava que havia alguma coisa por baixo do texto, do que estava sendo transmitido pelo texto, que eu não localizava mas que era uma coisa muito emocionante. E eu tinha que parar a leitura e ir lá na cozinha da minha amiga e lavar a cozinha inteira para ver se saía um pouco da tensão. E foi a partir daí, mais ou menos em 73, que eu comecei a estudar Guimarães Rosa para poder saber o que estava ali atrás. É uma ligação pessoal que a gente tem com a obra. Eu não estudo com um interesse acadêmico de comparar literatura, não. É uma coisa assim que, para mim, é um pouco vital essa história de saber o que um livro muito profundo está querendo passar.

Sábado - O Roteiro de Deus é, ao que parece, o seu ensaio mais polêmico sobre Guimarães Rosa, onde a há uma comparação da trajetória do Riobaldo com um caminhar em direção a Deus. Comparações entre obras, ou entre personagens, ou entre situações dramáticas, sejam elas reais ou não, são coisas bastante comuns entre os críticos do mundo inteiro. Ao fazer comparações assim, a senhora não teve o receio de entrar no rol de "mais uma comparação esquisita", que serve apenas para sustentar uma tese do crítico ou pesquisador?

Heloísa - "O Roteiro de Deus" é uma expressão do próprio Riobaldo. Então não sou eu que estou inventando. Agora, esses relatos de caminhada em direção a Deus são clássicos. Existem vários na literatura. Então eu acho que não estou comparando sem nenhum motivo. E como não sou da Academia, não sou de universidade alguma, para mim não me preocupa a mínima de estar fazendo essa comparação. É uma coisa de meu interesse, faço para o meu interesse e como acharam que era bom publicar, foi publicado. Se alguém encontrar alguma coisa que desperte um outro interesse em outro ponto, que bom. Se não, o que eu vou fazer? (risos)

Sábado - Mas a senhora está satisfeita com a repercussão dos seus trabalhos sobre Guimarães Rosa?

Heloísa - Repercussão, eu não vi. Essas coisas no Brasil são muito estranhas, porque se você não está no meio acadêmico, você é ignorado até certo ponto. Mas, por exemplo, a obra crítica sobre a Divina Comédia, de Dante, é uma coisa muito viva. Existem sociedades que escrevem, todo mundo escreve, há professores que lêem, que criticam, publicam resenhas. Aqui no Brasil não existe. Nem sei se no meio acadêmico em que as pessoas escrevam se tem mesmo conhecimento. Porque a interpretação de obras literárias não se faz nem por uma nem duas, não é? É acumulativo, porque as obras são, eu acho, inesgotáveis. E têm muito sentido, muitas camadas de sentido. Eu pego uma, alguém pega outra, e o que não invalida a minha não invalida a do outro, em tese. Mas eu não vejo isso muito no Brasil, talvez por ignorância minha, porque eu não estou lendo muito. Sei lá, não estou muito a par desse trabalho.

Sábado - No livro Grande Sertão: Veredas, objeto de seu estudo, Riobaldo faz um pacto com o diabo para derrotar Hermógenes. Esse pacto com o diabo não anula a sua tese sobre o encontro com Deus? A senhora uma vez respondeu a uma pergunta mais ou menos assim e explicou segundo uma lei do paradoxo. Eu gostaria que a senhora explicasse isso.

Heloísa - É que as coisas aparecem pelo próprio personagem. Ele mesmo disse como é que a gente pode ver a aproximação de Deus na figura do outro. Então, quem ele encontrou naquela encruzilhada, com quem ele fez um pacto, foi Deus, não foi o Diabo. Ele pensou que era o Diabo, mas não é. Aí ele diz como a gente encontra a aproximação de Deus na figura do outro. O outro era o Diabo. Tanto que ele encontra a Diadorim na figura do outro. De um homem quando era uma mulher. Então há todas essa ocasiões em que esse caminho até Deus é tudo muito traiçoeiro. Porque você se engana muito, você acha que está vindo numa direção e você está na outra. Acha que está certo e está errado. Por isso é uma coisa paradoxal.

Sábado - Em O Roteiro de Deus, a senhora se utiliza de referências de teólogos e filósofos medievais, figuras mitológicas, a psicanálise, a Divina Comédia...

Heloísa - Tudo isso Guimarães Rosa leu. Eu fui muito atrás da biblioteca dele, nas obras que ele tinha lido.

Sábado - Certo. E como é que esses elementos aparecem na obra dele?

Heloísa - É como eu te disse. Esses "roteiros de Deus" são coisas antigas. Ainda mais na Idade Média, isso era recorrente, essas tentativas de busca de Deus. Todos os grande santos da Idade Média, todos eles indicam de como você consegue chegar a Deus. E tudo isso ele leu. Não digo que ele copiou, mas essas coisas entraram e fazem parte da formação cultural dele. Eu acho que a inspiração veio muito misturado nesses temas medievais recorrentes. Eu acho que isso saiu na obra.

Sábado - A senhora defende a idéia de que Riobaldo, o protagonista, atinge, no final de suas aventuras, uma estatura elevada, um estágio superior. Roberto Schwarz diz, ao contrário, que ele vira um pacato caipira pensativo. Já Arrigucci Jr. diz que há um sentimento de perda no Riobaldo final, um certo aburguesamento e um sentimento de que "o sertão já não há". Como a senhora analisaria estas teses aparentemente contrapostas?

Heloísa - Olha, eu acho que ele aparece depois da morte. A morte da Diadorim é a morte dele. E a morte da alma dele. Ele morreu para o mundo e ele está em Deus. Então, Riobaldo não tem mais nada que ver com o mundo. Ele não tem mais nada que ver com jagunço. E ele casa com Otacíria, que é uma figura também meio divina, de figuração meio de Nossa Senhora. Quer dizer, é um abandono do mundo, por isso que dá essa sensação de perda. Porque, para as pessoas comuns, o mundo, a ação, o engajamento na sociedade, tudo isso é importante. E se você perde tudo isso, para as pessoas comuns você perdeu tudo, quando na verdade ele abandonou isso para ganhar Deus. É uma coisa completamente diferente do mundo. Isso é que é difícil para as pessoas entenderem. E isso, nesses roteiros de Deus medievais, é muito claro.


Sábado - E por que não é um aburguesamento?

Heloísa - Não é que ele seja aburguesamento. Porque um burguês estaria metido na sociedade. Ele estaria fazendo coisas de um burguês, vendendo coisas numa loja, poupando dinheiro. Coisa de vida pacata de burguês. Agora, ele não está fazendo nada, ele está meditando sentado na cadeira dele. Pensando em Deus.

Sábado - Os elementos que a senhora defende sobre a trajetória de Riobaldo aparecem também em outras obras de Guimarães Rosa?

Heloísa - Olha, eu tenho dois outros livros que estão para sair pela mesma editora de O Roteiro de Deus, mas não sei quando é que vão sair. Um é sobre as Primeiras Histórias, e o outro é sobre as Terceiras Histórias, ou Tutaméia. São coisas completamente diferentes mas que têm um tema recorrente religioso muito forte.

Sábado - É? Como isso aparece?

Heloísa - Ah, é difícil dizer. Por exemplo, Primeiras Histórias são onze contos. Cinco contos de um lado, cinco contos de outro. No meio tem um conto que se chama "O Espelho". E esse espelho é um homem que se olha no espelho e que se odeia. Acha que tem um rosto de onça. Então ele vai tentando não se ver no espelho, até que ele olha no espelho e não vê mais nada. E depois de um tempo ele começa a ver uma luzinha e um rostinho de menino nascendo. Também é o mesmo tema, embora seja muito mais sutil. Ele apaga o mundo, apaga as feições físicas, as maneiras, o sentimento. Tudo ele vai apagando do espelho e vê, depois, uma luzinha e um rostinho de menino, que é o nascimento de Cristo na alma. Quer dizer, ele abandona toda a figuração de imagens.

Sábado - Há previsão de lançamento desses dois livros?

Heloísa - Um vai chamar O Espelho e o outro se chama As Três Graças, que é sobre Tutaméia, o último livro dele. O editor já disse que vai publicar.

Sábado - Existem outros três livros da senhora que também são ensaios sobre  Guimarães Rosa: A Raiz da Alma, A Pedra Brilhante e Guimarães Rosa: Diplomata. Neste último a senhora fala sobre o escritor diplomata. Na sua visão, como era a atuação dele como diplomata?

Heloísa - Normal. Ele era uma pessoa muito correta, dedicada ao trabalho. O trabalho dele não tinha nada a ver com o obra literária. Ele foi durante muito tempo chefe da divisão de fronteiras, então existiam problemas dificílimos de resolver de demarcação de fronteiras com o Paraguai. São coisas muito técnicas, mas ele sempre foi um diplomata muito correto. No final foi promovido a Embaixador mas nunca teve um posto de Embaixador no Exterior. Eu acho que ele já sabia que estava com problemas no coração e não queria sair do Brasil.

Sábado - Por que tanta dedicação da senhora a Guimarães Rosa?

Heloísa - Não é por virtude. É por interesse interno meu. Pra minha própria vida.

Sábado - O Brasil - e aí eu falo da sua elite, claro - conhece bem Guimarães Rosa?

Heloísa - Ah, não sei.

Sábado - Ele é muito tachado de hermético...

Heloísa - É verdade. As pessoas têm que ter uma paciência para ler os livros dele. Não é uma coisa assim que você lê uma coisa que você vá até a esquina facilmente. Você não encontra Deus assim tão fácil. Você tem que fazer alguma esforço. Tem que conviver com o livro. Eu acho que a linguagem também... As palavras... São muitas coisas do português que as pessoas acham que são novas, inventadas, mas não são. São palavras antigas, o português daquela região do sertão veredas, que ficaram na língua local. A gente perdeu o conhecimento, mas não é coisa inventada. Há coisas que ele inventou, mas as pessoas acham que ele inventa tudo. Mas não inventa, não. Agora, o que eu li de filosofia, literatura, tudo isso me ajudou muito para entendê-lo.

Sábado - No Brasil, muitas vezes se costuma mitificar demais certos personagens. Como a senhora se posiciona nessa medida entre o estudo, mesmo o estudo devoto, e a mitificação exagerada? A senhora acha que com essa devoção a Rosa, há uma demasiada mitificação? Em que isso é bom ou ruim?

Heloísa - Eu acho que a gente precisa reconhecer quem fez uma obra realmente profunda, representativa, inteligente, original. Então eu acho que isso não é mitificar. Não é mitificar você reconhecer que Cervantes é um grande escritor, que Dante é um grande escritor, que alguns grandes santos tiveram uma vida espiritual muito intensa. Eu acho que você não precisa mitificar para reconhecer a vida e a obra de uma pessoa.

Maria Teresa Ayres mariateresa@opovo.com.br
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