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Gosto desses escritores e poetas tímidos, recatados, reclusos, solitários... São fascinantes pelo mistério que evocam. São uma espécie de sonho a que almejam os outros escritores, sempre necessitados de recolhimento e solidão e arrastados pela vida mundana, sempre com a sensação de estar perdendo tempo, perdendo tempo, a arte é longa, e a vida, breve... O Kafka dizia que seu sonho era viver num subterrâneo abobadado onde haveria apenas uma mesa, cadeira, papel, pena e tinteiro. Ali ele passaria dias e noites vestido num roupão, escrevendo, e teria como único movimento o levantar-se para pegar um prato de comida que alguém depositaria do lado de fora da porta. A que profundezas iria! Que coisas arrancaria dali!, ele diz. São os chamados subterrâneos de Kafka. Talvez uma síndrome, talvez uma paixão, talvez um medo.
Aqui no Ceará temos um assim, o poeta Francisco Carvalho. Não possui a determinação absoluta de Rubem Fonseca ou Dalton Trevisan, que jamais deram entrevistas, jamais se deixaram fotografar, os cearenses são de espírito maleável, muitos, e parece que Carvalho tem essa doçura que torna difícil dizer Não, e vez em quando sai uma entrevista, uma foto no jornal, alguma imagem na qual que vemos como é inevitável o seu embaraço, como é delicada a sua presença, quase ausente diante do estranho. E suas palavras, diz o jornal, saem em voz baixa, suas frases desaparecem antes do final, “como se interrompidas por reticências, ele se esquiva da conversa, lamenta a memória fraca, a dificuldade em andar e repete: ‘Faltam as palavras’...” Na verdade, dá as entrevistas por escrito. Prefere dar por escrito. Na escrita, no solitário recinto do seu gabinete, não faltam as palavras. Nem sobram. São exatas, contadas, precisas, preciosas. Palavras de poeta. “É verdade que sempre fui arredio. Sempre olhei mais para dentro do que para fora. Sempre fui inquilino da timidez. Fiz esforços para mudar, mas não consegui alterar o desenho do molde primitivo”.
Ele diz que toda grande poesia possui uma relação com o silêncio, o poeta precisa se recolher ao silêncio para ouvir a si mesmo. Sim, a reclusão, o silêncio, a timidez, servem muito bem à palavra escrita. Também às lembranças, e Carvalho tem vivas recordações de sua cidade natal, Russas, que ele achava “triste na quadra invernosa e poeirenta nas tardes de verão, quando o vento do Aracati soprava mais forte”. Ele se lembra de figuras que moravam na cidade, um monsenhor a consolar os pobres, um beato coberto de efígies e medalhas, lembra da sua escola, das matracas berrando nos rituais religiosos, das procissões, da passagem de mortos levados em redes, a um triste dobrar dos sinos, que o marcaram para sempre. “Em vários poemas meus existem vestígios desse tempo e das impressões causadas pela cidade a um menino que, de forma ingênua e talvez equivocada, tentava descobrir o mundo à sua volta”.
Essas recordações deram o belo poema que fez para sua cidade, do qual retiro alguns trechos como se fossem prosa: “Cidade das éguas russas que só pastam saudade ... o repentino crepúsculo dos morcegos ... Os velhos ao gamão, à sombra do tamarindo, monsenhor Vital pastorava o luar como se fosse um rebanho de carneiros balindo. ... Os mortos passam lentamente pela rua principal, do fundo da torre negra o sino os acompanha com lágrimas de metal. ... O tempo passa boiando nas lerdas águas do Araibu ... Cidade das éguas russas que pastam nos campos ralos das éguas que se foram tangidas pelo vento da respiração dos cavalos. ... Cidade das éguas russas que só pastam saudade, os caminhos do morto que vai para a eternidade passam pelo meu corpo”. E da morte de seu pai ele tira uma poesia emocionante: “Volto a ser o menino que segurava o teu braço pelas ruas da cidade vazia. Só a manada dos ventos dialogava com as aldravas que restaram dos antigos invernos e ríspidos estios de pássaros e nuvens que se acasalavam no ar”.
Mas nem só de beleza e memória se faz sua poesia. Há crítica, revolta, ironia, e há o humor da inteligência. Disse ele, um dia, falando da sua construção poética: “Sem indignação não se produz boa literatura”. E ele investe contra o mundo, contra a burocracia, os mísseis, o olho da serpente, as teias de mitos, as vaidades... Contra o fato de não haver mais lugar para a poesia no mundo atual. Mas a matéria de seu canto é o barro, o barro da infância, o barro de Russas, o barro de si mesmo. E escreve poemas tão excelentes e emocionantes que abençoam qualquer timidez ou reclusão.
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