[an error occurred while processing this directive][an error occurred while processing this directive] Minha pequena Fortaleza | Caderno Especiais | O POVO Online
Papicu 13/04/2013

Minha pequena Fortaleza

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Fortaleza era uma cidade invisível para mim. Uma cidade que não respondia minhas perguntas. Eu odiava até, supremo pecado, o inclemente sol de Fortaleza. Foi preciso me afastar dela, milhas de quilômetros, para senti-la pulsando intransigente em meu peito. Sim, porque nossa cidade sempre nos acompanha. A cidade de nossa infância é sempre o mundo inteiro em nós.

 

Se eu fosse grega, medieval ou renascentista seria conhecida como Sandra Helena de Fortaleza. E como uso pouco o sobrenome familiar, nada me definiria melhor. Há uma sabedoria primeva em se denominar alguém por seu pertencimento geográfico citadino. Talvez seja o paleolítico em nós. Não me seduzo pelos discursos da errância burgueso-cosmopolitista, autodenominados desenraízados (do tipo “sou cidadão do mundo”). Logo eu, filha de uma terra de mercadores nômades e incultos. Mas generosos, criativos, espertos, muito, muito bem-humorados..e crédulos.


Filha de trabalhadores pobres nasci e cresci na Vila do Meio. Desde cedo aprendi que por isso eu era melhor do que aqueles da Vila do Arame, vá lá saber por quê. As tais vilas margeavam o recente e imponente Ginásio Paulo Sarasate e essa localização privilegiada sempre me rendeu dividendos na escola, apesar da casa minúscula. Uma pobrinha bem localizada. A cidade àquela época ainda não era a quinta mais desigual do mundo e éramos apenas crianças de quase todas as classes na mesma escola pública, sem suspeitar que vivíamos um dos períodos mais terríveis da história de nosso País. Mas eu já sentia na pele a desigualdade, sobretudo a arquitetônica, que criança-adolescente não conseguia compreender.


Anos depois, de volta de uma incursão demorada no sul do País para estudos, vim a morar no Papicu, agora professora universitária, isto é, “rica”. Agora eu era alguém que alugava um apartamento no nono andar, com varanda. Um luxo só. Lembro-me da primeira vez que cheguei à sacada e olhei para baixo. Uma ideia estranha me tomou: os prédios pareciam ter sido ali encaixados pelo alto, como se viessem pré-moldados. De cima víamos pequenas casas e barracos completamente comprimidos, vielas estreitíssimas como se tivessem se acomodado à invasão imobiliária dos prédios, um dos que agora eu habitava. Não pude deixar de pensar em minha velha casa de infância. Descobri que estávamos morando na Favela Verdes Mares, só que no nono andar. Meu novo bairro era um Rio de Janeiro em 3x4, de um modo muito mais potencialmente explosivo. Uma suposta riqueza de classe re-mediada com uma pobreza visceralmente exposta em todas as suas mazelas, convivendo juntinhas demais da conta. Pontos de droga que acompanhávamos da varanda, com os carrões da elite vindo se locupletar, tranquilamente. E nós nem fazíamos parte da inteligência da polícia. Brigas de casais, espancamentos, crianças nas ruas e som ao redor, não inteiramente agradáveis.


Um dia, resolvi descer e penetrar a favela, minha faixa de Gaza particular. Beber uma cerveja com os meus, pobres de origem como eu, mas tão distantes do que eu me tornara, pensava eu numa tarde de domingo especialmente melancólica.


Entrei no boteco mais movimentado e barulhento e, enquanto aguardava a cerveja, um homem jovem que me pareceu ser o chefão do lugar aproximou-se e perguntou o que eu queria ali. “Não sou polícia, não sou isca, não quero drogas. Quero apenas tomar uma cerveja. Moro ao lado.” “Sozinha? Não tem medo?” “Um pouco, mas a curiosidade é maior”. “Fique tranquila, ninguém lhe fará mal, eu garanto”. Quando saí um rapaz me acompanhou até a porta do prédio. Nunca me senti tão segura em Fortaleza. Por fora e por dentro. Nem antes, nem depois.


Papicu é Fortaleza concentrada em sua criminosa desigualdade. Há de conhecê-lo pelo alto e pelo baixo. Lá eu ouvi algumas das respostas que procurava sobre mim, desconcertantes mas que me tornam quem sou, com muito mais coragem.


SANDRA HELENA DE SOUZA

É professora de Filosofia e realmente “livre”- pensadora. Estudou em instituições públicas do fundamental à pós-graduação. Só descobriu o amor por Fortaleza após deixá-la. Voltou para não mais partir. Mora atualmente no Cocó.

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