[an error occurred while processing this directive][an error occurred while processing this directive] Minha Fortaleza Particular | Caderno Especiais | O POVO Online
Messejana 13/04/2013

Minha Fortaleza Particular

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Meu pai avisou do retorno a Fortaleza com o mesmo desassossego do dia em que informou que estávamos deixando a cidade natal 10 anos antes. Seria tudo rápido, em menos de dois meses, a partida. Da ida, só tinha histórias contadas pela minha mãe, na volta, lembro-me de que me agarrei ao calendário da escola para garantir mais uns dias no lugar, cujo desenho havia começado a rascunhar sozinha, na liberdade dos 14 anos. A avenida Frei Serafim, a praça Pedro II, o Palácio do Karnarck, a praça da Bandeira, o Teatro 4 de Setembro, as bancas de revistas onde trocava quadrinhos, o cinema Rex, tudo fervilhando de gente que estudava nas escolas próximas, no vai e vem dos intervalos, nas aulas formidavelmente assassinadas com amigos que minha mãe chamava carinhosamente de “maconheiros” e proibia vigorosamente os encontros. Mas, nada como uma cidade onde se pode trafegar como quem voa...

 

Na noite do aviso, sofri enormemente. Fortaleza, durante uns tempos, era uma visão distante, a “cidade grande”, onde havia as melhores escolas, as universidades, e a família que quase não víamos. Era hora de voltar. Além do mais, “essa menina”, meu pai dizia, precisava de uns “cuidados especiais”, que pareciam exclusivos de Fortaleza. Minha mãe e meus irmãos arribaram em dezembro. Permaneci na cidade para concluir o ano na escola. Janeiro mal encostou, meu pai foi me buscar. O nó dos documentos da transferência, atual motivo da demora, se desembaraçou em minutos. Quando percebi o assunto quase encerrado, arrisquei um “não quero ir”. “Vai, porque você ainda não tem querer”. Ele tinha. Mas, até um pai se engana.


Cheguei à minha Fortaleza. Um quarteirão rodeado por muros amarelos. O portão estreito guardava duas filas de roseiras margeadas por uma passarela, onde quatro bancos olhavam-se aos pares, uns para os outros. Fui recebida por uma comitiva de mulheres, com a maior alegria desse mundo. Falavam quase todas de uma vez, cada uma pegou algo para carregar, uma tomou minha mão, como quem apanha a mão de uma criança e me levou para dentro. Havia mesa posta com o café da manhã. Só quando entrei na sala de jantar, vi meninas da minha idade. Na primeira meia hora, soube que iria morar ali. Na meia hora seguinte, desconfiei que meu pai me queria santa.


Messejana parecia cidadezinha do interior, silenciosa e bucólica. Do dormitório, ouvia os sinos da matriz. Sítios dividiam o quadrilátero onde eu morava com casinhas que resistiam há gerações. Na esquina, a mercearia guardava histórias de dezenas de anos de uma mesma família. Minha tia, aos poucos, me dizia os nomes dos moradores. Os únicos movimentos do bairro eram a feira do domingo, as quermesses e as festas religiosas. No entanto, minha vida, nos primeiros meses em Fortaleza, deu-se dos muros amarelos para dentro. O sítio era imenso, com pés de sapoti, manga, caju, goiaba, e ocupado por dois prédios. Num deles ficavam salas, biblioteca, cozinha e alguns quartos e no outro, os dormitórios num sobrado. Embaixo dos dormitórios, salas de aula. Por fora, parecia tudo tão calmo, mas, dentro, uma pulsão vital tomava conta de tudo. Naquele ano, 26 meninas se preparavam para a vida religiosa na casa. Eu não era uma delas.


Meses mais tarde, à medida que Messejana diminuía na minha vida, outra Fortaleza se expandia com força, embora completamente diferente do que eu pensava aos 16 anos. A cidade estava longe, mesmo àquele tempo, de preencher os espaços das minhas expectativas e, de alguma forma, permaneceu uma estranha, feito obra hermética, cujos significados não se desvendam ou permanecem incompletos. Quando deixei Messejana simbólica para trás, fiz sozinha, meu primeiro passeio à Praia 31 de Março. Levei um livro e fiquei quase o dia inteiro lendo, ouvindo só o barulho do mar. Nunca havia me sentido tão livre, tão livre, tão livre... Embora, no fundo, alguma coisa me dissesse que esta cidade seria, para sempre, incompreensível. Assim como uma vida inteira...


REGINA RIBEIRO

Fortalezense da gema, jornalista, editora das Edições Demócrito Rocha. É mestre em Literatura Comparada, ama ler e ama esta cidade. Talvez por isso, às vezes, fica tão chateada com a nossa deselegância coletiva, com essa mania do novo.

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