Filosofia Pop 27/10/2014

Política dos clichês e a resistência

notícia 0 comentários


POR OVÍDIO ABREU

 

Em seus livros sobre cinema (Cinema 1. A Imagem-movimento e Cinema 2. Imagem-tempo), o filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) retoma uma importante distinção estabelecida por Henri Bergson (1859-1941) entre percepção centrada e descentrada. A primeira implicaria um regime sensório-motor no qual a percepção – orientada pela inteligência no sentido de responder às exigências práticas da vida – se prolonga imediatamente em ação. A partir desse tipo de percepção centrada é que surgiriam os chamados “clichês” como imagens sensório-motoras das coisas, de caráter necessariamente parcial, pois derivam de sujeitos orientados por interesses específicos.


Porém, como já observava outro filósofo – o alemão Walter Benjamin (1892-1940), em A Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica –, nas sociedades modernas surgem tecnologias (a fotografia e o cinema) que vão de par com uma reconfiguração social capitalista, tornando a questão sobre a percepção das imagens (e, por conseguinte, dos clichês) imediatamente política. Pois, segundo Benjamin, o que seria próprio das novas tecnologias é uma ambivalência. Por um lado, elas promovem as massas ao assegurarem a reprodução e difusão de imagens para todos; por outro lado, essas tecnologias estão integradas a novos centros de poder propriamente capitalistas que submeteriam as massas.


Deleuze retoma o problema de outro modo, tornando a discussão mais complexa por meio da introdução de uma variedade maior de procedimentos de composição social. Torna-se necessária, entre outras coisas, uma diferenciação dos regimes, inclusive imagéticos, através dos quais uma sociedade se constitui e organiza.


No caso do capitalismo, que se apresenta como um sistema livre que se autorregula – sem princípio superior e único de ordenação social –, verifica-se uma disseminação de centros de poder que têm por função garantir, justamente por meio de clichês, uma estabilização relativa dos significados em meio à ampla circulação de imagens. Eis porque, para o filósofo, a civilização capitalista é melhor definida como civilização dos clichês do que como civilização das imagens.


Um exemplo desse tipo de operação de produção de clichês se encontra no atual debate político travado no Brasil em torno do tema da corrupção. Não se trata, evidentemente, de discutir se há ou não corrupção no País, mas de observar como a ideia funciona como clichê, ou seja, como emerge como resposta unilateral a uma crise social e política e, deste modo, permite nos poupar do pensamento acerca de situações intoleráveis (a crise).


No entanto, a emergência da ideia de corrupção como clichê nada tem de espontânea. Trata-se de uma ideia produzida e repisada pelos centros de poder vigentes com o intuito de desviar o olhar de um questionamento mais radical a respeito do sistema político e econômico em que estamos. É neste sentido precisamente que a ideia de corrupção como mal maior funciona como um clichê, não atuando como “solução” para a origem da crise (dimensão cognitiva) sem produzir uma subjetividade empobrecida, que acusa mais do ue reflete e age (dimensão afetiva).


As manifestações de junho de 2013 apresentaram uma vitalidade que, em certo sentido, conseguiu resistir aos clichês da política, muito embora os centros de poder midiáticos tenham tentado interpretar todos os protestos em termos de clichês como o da corrupção. Agora, porém, nestas eleições de outubro, a discussão política na grande imprensa foi praticamente reduzida a um debate sobre quais seriam os políticos e partidos mais corruptos.


Mas o que exatamente estaria em jogo nessas duas experiências políticas recentes dentro da perspectiva de Deleuze?


Ora, se o clichê é uma imagem sensório-motora do mundo e de nós mesmos, e se esta implica uma passagem automática da percepção à ação em função de determinados interesses, buscando nos poupar do que haveria de intolerável em certas experiências, então está claro que ele promove uma separação entre nós e o mundo. Seria sempre em nome de um mundo “melhor”, mais verdadeiro (incorruptível), que deveríamos orientar o pensamento e a vida.

 

Por outro lado, encontramos, talvez, nas manifestações do ano passado algumas pistas para uma resistência aos clichês que testemunham uma crença nas potencialidades do mundo enquanto tal, sem pretender uma onipotência de respostas, requisitando o pensamento diante de um mundo necessariamente impuro.


Ovídio Abreu é antropólogo e professor de filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF).

 

espaço do leitor
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro a comentar esta notícia.
0
Comentários
500
As informações são de responsabilidade do autor:

Filosofia Pop

RSS

Filosofia Pop

Alesandro Sales

Escreva para o colunista

Atualização: Segunda-Feria

RSS

Paulo Oneto

Escreva para o colunista

Atualização: Segunda-Feria

RSS

Charles Feitosa

Escreva para o colunista

Atualização: Segunda-Feria

TV O POVO

Confira a programação play

anterior

próxima

Divirta-se

  • Em Breve

    Ofertas incríveis para você

    Aguarde

Erro ao renderizar o portlet: Caixa Jornal De Hoje

Erro: maximum recursion depth exceeded while calling a Python object

Newsletter

Receba as notícias da Coluna Abidoral

Powered by Feedburner/Google