O POVO


ENTREVISTA

A atualidade do monstro

20/06/2016 | 00:00

Há duas décadas, em 1816, a britânica Mary Shelley aproveitava sua estadia em um castelo suíço para escrever a obra que a tornaria conhecida no mundo da literatura, Frankenstein. Publicada dois anos depois, o texto de Shelley cruzou os séculos e chegou aos nossos dias mais atual do que nunca.

Na entrevista a seguir, Rogério de Almeida, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), comenta a importância do livro para o desenvolvimento da literatura de horror e ficção científica e nos convida a refletir sobre o que há de monstruoso em todos nós.

O POVO: Por que Frankenstein permanece atual?

Rogério de Almeida: Todos nós precisamos de histórias para viver, precisamos de mitos que nos digam quem somos e em que mundo vivemos. Frankenstein é um desses mitos, pois encarna o medo de que os avanços científicos possam causar danos à civilização. O livro questiona até onde a ciência pode ir. É como um alerta ao desejo do homem de dominar a natureza, de descobrir os mistérios da vida e da morte. E isso é atual. Há hoje um temor cada vez maior em relação às mudanças climáticas. A narrativa predominante nos diz que somos culpados dessas mudanças, que ultrapassamos os limites, que profanamos a natureza, que criamos um monstro com o qual não sabemos lidar. Outro ponto importante do mito de Frankenstein é que expressa o nosso desejo de imortalidade. A alquimia buscava o elixir da vida eterna, a religião promete a imortalidade da alma e a ciência tenta o mesmo. Basta ver como os avanços da medicina têm proporcionado uma maior duração da vida humana. Por outro lado, esse prolongamento da vida tem gerado efeitos não previstos, como Alzheimer, demência e outros problemas mentais advindos da longevidade. Então Frankenstein permanece atual porque nos fornece um modelo que ajuda a compreender os dilemas que vivemos.

OP: É costume associar Frankenstein à literatura de ficção científica, como a obra que inaugurou o gênero. É uma associação plausível? O que a ficção científica herdou de Frankenstein?

Rogério: Quando Mary Shelley escreveu Frankenstein, não estava pensando em fundar um novo gênero literário, a ficção científica, mas estava produzindo uma obra de horror, uma história de terror, enquadrada na estética romântica de então. O desejo romântico é o da possessão. Todo drama deriva de não poder possuir o que se deseja. É assim com as histórias de amor. A amada não pode ser possuída e isso gera sofrimento. Em Frankenstein, o desejo é possuir o segredo da vida, é ultrapassar os limites da morte. E o meio de se atingir esse desejo é a ciência. Bem, sabemos que a história termina mal: o monstro é rejeitado, pois sua aparência é repugnante e sua força incontrolável. Não foi possível possuir o segredo da vida, o que se conseguiu foi gerar terror. Nesse sentido estrito, o Frankenstein de Mary Shelley é uma história de horror. Acontece que, posteriormente, quando começa a se formar um conjunto de obras de “ficção científica”, já no século XX, surge a necessidade de se buscar os precursores e, aí, inegavelmente, Frankenstein passa a ser importante, pois é uma obra cujo protagonista é a ciência.

OP: A obra se insere dentro da literatura que estava sendo produzida naquela época ou ela é um ponto fora da curva?

Rogério: Completamente inserida no que se produzia então. Creio que a história seja conhecida, mas nunca é demais recordá-la. Em 1816, Mary e Percy Shelley se juntam ao Lord Byron, famoso poeta inglês, num castelo suíço, quando são surpreendidos por fortes chuvas que os obrigam a ficar três dias dentro de casa. É quando decidem fazer uma aposta: quem consegue escrever o conto de terror mais assustador? Bom, sabemos a resposta. Mary Shelley venceu. Mas por que escreveriam histórias de horror se o gênero não estivesse em voga? Aqui no Brasil, embora não tenhamos uma tradição de contos de horror nem uma figura tão emblemática quanto Frankenstein, temos Noites na Taverna, de Álvares de Azevedo, que é um bom exemplo dessas histórias produzidas pelo romantismo.

OP: O que Frankenstein diz sobre nós mesmos? O que há na criatura de nossa própria monstruosidade?

Rogério: Embora seja pouco investigado, há um aspecto crucial no mito de Frankenstein: o monstro não é um fracasso da ciência, mas um fracasso da educação. A criatura é abandonada logo após ser gerada. A parte “científica” do experimento deu certo, a criatura ganhou vida, mas a parte educacional não, pois ela não se tornou “humana”, não recebeu “educação”, não aprendeu a viver em sociedade, a conviver. É interessante observar que o livro explora em detalhes todo o processo de formação do monstro. Ele aprende sobre a vida lendo os clássicos da literatura. É uma criatura sensível e desejosa de amor. Mas todos se assustam com sua aparência. Esse ponto até hoje não foi superado. Atualmente, as pessoas gastam muito tempo e dinheiro cuidando de sua aparência física, muito mais do que de sua saúde mental ou de sua sensibilidade. Nossa sociedade investe em antidepressivos e tratamentos estéticos, mas é preguiçosa e avara quando se trata de cultivar a sensibilidade. Interessa-se pouco por literatura, cinema, teatro, enfim, arte em geral. Este tema preocupou Oscar Wilde. O Retrato de Dorian Gray, no qual o protagonista mantém-se sempre jovem enquanto seu retrato envelhece, é um belo exemplo do culto à aparência. Então, embora nossos corpos sejam belos, nossa sensibilidade é monstruosa, porque rejeita se educar. Qual o impacto disso? Sem educação não aprendemos a conviver. E hoje, dentre todas as crises que temos, a crise da convivência me parece de suma relevância. Estamos dispostos a conviver com o diferente? Aí está nossa monstruosidade!

OP: O que mais te chama atenção no livro?

Rogério: O contraste entre a feiura do monstro e sua sensibilidade estética. É uma criatura que se sensibiliza com a literatura, com a música, é interessada em aprender, ingênua como as crianças, mas com uma força descomunal e uma inaptidão para a vida social que é fruto da ausência de educação. Esse ponto importante da obra fez com que eu me unisse aos pesquisadores portugueses Alberto Filipe Araújo, José Ribeiro e Armando Guimarães para escrevermos Olhares sobre Frankenstein, um livro que investiga justamente os desdobramentos educacionais, literários e cinematográficos desse mito que segue vivo, mesmo à beira de seu segundo centenário.