Caranguejos Amarelos

O predador da ilha

O isolamento transformou um caranguejo no maior predador da ilha de Trindade, um ponto extremo no oceano Atlântico

Demitri Túlio demitri@opovo.com.br

Aausência de animais de grande porte, e de instinto implacável, fez do Johngarthia lagostoma, um caranguejo de carapaça amarela, o predador mais voraz na cadeia alimentar da ilha de Trindade. Talvez as longas distâncias para se chegar lá e o isolamento no meio do oceano Atlântico transformaram os 9,28 quilômetros quadrados do ilhéu no principal território do crustáceo.

2º Dia

Os fortes enjoos me fizeram passar a 1ª etapa da viagem deitado em um alojamento da corveta. Três beliches ocupados por mim e os pesquisadores: Mendes e Allan, da UnB. Difícil dormir. Um ferro evitava que fôssemos ao chão por causa do balanço intenso do navio.

São milhares no rés da terra firme, principalmente à noite. Seja na praia à espera de presas (filhotes de tartarugas, cangulos encalhados) ou nos topos das montanhas, caso da trilha do Desejado (3.100m). Mais da terra firme do que do mar (mergulham na época da reprodução), a espécie não se intimida com a presença de pessoas. A atividade incessante pela busca de alimento, os levam ao entorno das instalações militares do Posto Oceanográfico da Ilha de Trindade (Poit) e da Estação Científica – rancho dos pesquisadores e área onde existe abundância de castanhola. Fruto de seu gosto.

Quem chega à ilha pela primeira vez é avisado por cientistas e marujos dos cuidados que se deve ter com os hábitos do caranguejo. Não que ataquem humanos vivos, mas há neles um incontrolável apetite por devorar o que aparece no caminho. Não dispensam chinelos, botas, tênis, bolsa, alimento expostos e lixo. No ritual da coleta pelo que comer, impressiona ouvir o ruído das patas exageradas nos silêncios da ilha.

3º Dia

As refeições na apertada corveta Caboclo obedeciam uma ordem. O refeitório não comportava, ao mesmo tempo, oficiais, cientistas e jornalistas. Então primeiro as visitas, depois os militares. Quem terminava dava lugar ao outro. Havia dias em que o mar estava "bravo" e era preciso segurar pratos e cadeiras.

Em 1918, o explorador Bruno Álvares da Silva Lobo descreveu para o Arquivo do Museu Nacional do Rio de Janeiro a dificuldade que teve na lida com o invertebrado. “O crustáceo é o verdadeiro dono da ilha. É temido pelos filhotes de aves marinhas e causa grande destruição entre tartarugas quando estas saem dos ovos. São curiosos, insistentes, ousados, nada receando, o que nos provoca grande impaciência, a ponto de, tempos a tempos, termos de corrê-los a pau”.

No documento Conferências sobre a ilha de Trindade, Silva Lobo conta que “tendo aprisionado uma fragata viva, amarramos a ave por um pé, junto a nossa barraca. No dia seguinte, só existiam os ossos. Durante a noite, foi atacada e destruída por eles”, registrou o naturalista que foi diretor do Museu Nacional de 1915 a 1923.

4º Dia

Na Ilha, na hora do almoço e jantar, nos servíamos no refeitório da guarnição da Marinha. Comida a base de feijão, arroz frango e boi. Quem comia, lavava o prato, talheres e o copo.

Curiosamente, na lista atualizada das espécies ameaçadas do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), o Johngarthia lagostoma figura entre os animais da fauna brasileira “em perigo” de extinção. Na página que informa sobre o caranguejo, apenas Fernando de Noronha (PE) e o Atol das Rocas (RN) são esquadrinhados como habitat do crustáceo e lugares onde os pesquisadores mapearam o grau de vulnerabilidade do invertebrado.

Harry Boos, biólogo e analista ambiental do ICMBio, explica que, na avaliação do risco de extinção da espécie no Brasil, são considerados todos os locais em que o invertebrado ocorre. Ele pode ser abundante em um local, como em Trindade e Martins Vaz, mas estar diminuindo em outro (leia entrevista abaixo). Na prática, falta pesquisa científica atualizada sobre o comportamento do caranguejo amarelo na especialíssima cadeia alimentar de Trindade. (Demitri Túlio/demitri@opovo.com.br)

Invasão 1

Em 1783, a coroa portuguesa enviou à Trindade o navegador José de Mello Brayner. A missão dele era ocupar a ilha, que estava em território brasileiro e ameaçado pelas invasões inglesas. Em 1700, o astrônomo Edmund Halley (o que batiza o cometa) desceu na ilha. Outros britânicos também passaram por lá. Além de traficantes de escravos.

Invasão 2

O navegante português José de Mello Brayner, então, deixou na ilha 150 casais vindos da colônia dos Açores e religiosos franciscanos. A ideia iniciar um povoamento em Trindade. Além das pessoas, foram levadas sementes, ovelhas e porcos. Mas, segundo o naturalista Bruno Álvares da Silva Lobo, a empreitada não vingou. Em 1795, as famílias foram resgatadas em estado absoluto de miséria.

Livro

O caranguejo amarelo também pode ser visto nos galhos das castanholeiras ou nos troncos de alguns pés de azeitonas que existem na ilha. O livro Nos Limites da Amazônia Azul – as ilhas de São Pedro e São Paulo mais Trindade, de Antônio Marinho e Roberta Jansen, dedica quatro páginas ao animal.

Presa

O Grapsus grapsus, um crustáceo esverdeado, também é visto em Trindade. Em menor quantidade que Johngarthia lagostoma. Ele também não dispensa os filhotes de tartaruga verde (Chelonia mydas).

Pirajá

Há uma chuva repentina e forte que ocorre com frequência em Trindade: a pirajá. Está ligada ao fato de a Ilha ser aberta às massas de ar e a diferentes pressões. É concentrada em regiões diferentes da ínsula.

Cárcere

O cearense Juarez Távora foi preso em Trindade, entre 1924 e 1926. A Ilha virou presídio para os rebeldes do Movimento Tenentista (1922). Na época, uma imagem de Nossa Senhora de Lurdes foi levada pela filha de um dos prisioneiros (Valdomiro Lima) para uma gruta na Ilha. De lá pra cá, o local virou lugar religioso. Marinheiros e civis que passam, ou moram por algum tempo na ilha, deixam lá recordações. Fardas, fotografias, desenhos... A gruta, no entanto, carece de limpeza e organização.