Carlos Chaparro 09/01/2017

Jornalismo sempre em transformação

Pesquisador, com 60 anos de atuação como jornalista, Carlos Chaparro afirma que as demandas sociais exigem um jornalismo cada vez mais atento e esclarecedor da atualidade
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Cláudio Ribeiro claudioribeiro@opovo.com.br
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Demitri Túlio demitri@opovo.com.br


Carlos Chaparro tem uma série de frases definidoras deste jornalismo atual, em transformação permanente. Você vai perceber ao longo da entrevista. Lança cada uma em tom professoral, do tempo que esteve no magistério de fato e com a experiência de quem completa 60 anos na profissão em 2017.

 

Analista dos rumos da informação na sociedade, aposentado mas ainda bastante atuante  na área, Chaparro diz que “o mundo é que muda o jornalismo”, não o contrário. Que o jornalismo “não é mais o dono da notícia”, passou a ser “uma linguagem social utilizada por todos” e no tempo de cada um, não apenas na decisão dos grandes veículos de comunicação.

 

Aos 83 anos de idade, Chaparro admite que o passado com a profissão lhe trouxe mais desilusões que o momento atual. Seu estímulo é que o jornalismo continue a lhe surpreender.

O POVO – Por onde o senhor acha que o jornalismo vai caminhar em 2017, depois de um 2016 tão absurdo, controverso - até encurralado para algumas coisas?
Carlos Chaparro – Eu não acho que o jornalismo está encurralado, ao contrário. Hoje é uma linguagem social intensamente usada, por todos. Por quem faz a notícia, por quem apura os fatos a serem noticiados, pelos leitores e telespectadores. O mundo hoje sem a linguagem jornalística ficaria capenga. O que está em crise acho que é a profissão de jornalista. Mas não em crise porque tenha perdido a importância. Porque o jornalismo e os jornalistas insistem em achar que o jornalismo é mais importante que o mundo. E que a atualidade e o mundo pertencem ao jornalismo. E é exatamente o contrário: o jornalismo pertence à atualidade, pertence ao mundo. Não é o jornalismo que muda o mundo, o mundo muda o jornalismo. Você hoje faz jornalismo num mundo em que as coisas são noticiadas no momento em que acontecem. O que transforma a realidade não é mais a materialidade dos fatos, mas a possibilidade tecnológica de o fato ser assistido em forma de notícia em escala universal. Portanto, o que produz a transformação não é mais o acontecimento, mas a notícia do acontecimento. Já houve tempo em que havia um intervalo muito grande entre o acontecimento e a notícia. Esse intervalo desapareceu. Isto significa que o jornalista da redação perdeu o controle sobre a notícia. Quem produz o acontecimento já enxerga no acontecimento como âmago a notícia. Porque o acontecimento só tem potencial transformador na medida em que circula no mundo em forma de notícia. Por isso se tem tantos jornalistas a trabalhar nas fontes.

OP – Se você estivesse numa Redação, como estaria se vendo hoje?
Chaparro – Uma coisa que faria, eu não repetiria o que a televisão deu na véspera. Porque o que a TV deu na véspera já está velho, o mundo já mudou. Então, essa crise atinge basicamente o jornalismo impresso. O jornalismo impresso já imaginou ser durante muitas décadas o eixo dos movimentos do mundo. O jornalismo impresso hoje tá na rabeira da notícia, mas não perdeu a importância, não. Porque na medida em que o mundo passa a estar mais bem informado, o mundo oferece ao jornalismo impresso uma demanda nova que é a da explicação, da divergência, da polêmica, da elucidação, do aprofundamento, da contextualização dos fatos, para que as pessoas compreendam exatamente o que as coisas significam e possam fazer também as suas interferências no seu espaço de viver. Eu acho que há uma grande demanda nova sobre o jornalismo impresso que é a da explicação, da investigação, ir além daquilo que aflora no horizonte. Tem que fazer mergulhos, explicar, entrevistar, debater, oferecer análise. Nos jornais impressos, o que marca a discussão pública é cada vez mais notícia velha que aparece nas primeiras páginas, quando as grandes ideias que estão no jornal, no editorial ou nos artigos, mal têm a citação na primeira página. Eu penso que deva haver cada vez mais uma valorização deste jornalismo. O articulismo deve ser valorizado, a entrevista deve ser uma espécie cada vez mais utilizada para se produzir a polêmica, só que isso tem que ser feito num ritmo que responda à velocidade das demandas. É preciso adquirir competências novas.

OP – O senhor acha que está havendo essa autocrítica? As redações estão fazendo esse debate?
Chaparro – Não estão porque elas são arrogantes. Vocês são jornalistas, eu sou jornalista profissional desde 1957, e sempre achamos que éramos os caras que sabiam mais do que tudo. Acontece que nós jornalistas não geramos nada nas redações. Nós sempre dependemos de coisas que os outros dizem ou fazem. Esse é o nosso papel, de narrador e analista. Não podemos nos sentir, portanto, donos da notícia. Já houve uma época em que se acreditava que o jornalismo era o dono da notícia, publicava a informação quando quisesse e como quisesse. Esse tempo desapareceu porque agora a gente assiste às coisas no momento em que elas acontecem. A notícia ganhou autonomia, evadiu-se das redações, mas ao mesmo tempo a notícia criou demandas novas. Demandas de explicação, de aprofundamento, de debates, que exigem uma qualidade crescente do jornalismo impresso. Essa vocação você não pode exigi-la da televisão nem do rádio. Vai exigir o jornalismo de elucidação e explicação nos meios impressos, por causa da permanência do texto.

OP –Ao mesmo tempo que o senhor fala isso, há um consumo maior do jornalismo online, que é muito mais superficial – aqui falando sem maniqueísmos.
Chaparro – Aí nós vamos falar de outra coisa, vamos falar de texto. O texto é cada vez mais valorizado, tem que ter cada vez mais qualidade. Por outro lado, o jornalismo enquanto linguagem, que é cada vez mais utilizada, tem que ter mais credibilidade. Hoje se descobre facilmente a mentira, a fraude. O jornalismo tem que ter cuidados, zelo, para que possa continuar a ser uma linguagem confiável. Porque se o jornalismo não puder ser acreditado, não é só o jornalismo que fracassa. Fracassam os processos sociais. Nós profissionais de jornalismo temos que ter como primeiro dever zelar pela confiabilidade da linguagem jornalística, qualquer que seja o lugar em que trabalhe. Mesmo se estiver trabalhando nas fontes, temos que assumir a responsabilidade e, no nosso espaço profissional, zelar pela confiabilidade da linguagem jornalística. Que é um bem público, da coletividade, não é um bem dos jornalistas.

OP – O senhor falou de texto, vou falar de apuração e ética. Como o senhor analisa a cobertura dos grandes veículos para os casos do impeachment e da Lava Jato?
Chaparro – Você tem coisas muito boas e outras muito ruins, inclusive sob o ponto de vista ético. Se você for no meu blog (oxisdaquestao.provisorio.ws), há um texto sobre a divulgação de gravações, mesmo as autorizadas. Isso é crime. Isso é um equívoco do pessoal do Ministério Público, ao mesmo tempo é uma arma que eles usam para se fortalecer e se defender. É briga de gente grande, poderes Legislativo e Executivo. Não é uma briga fácil. Já dei curso para promotores e uma das coisas que eles usam para se defender em ações arriscadas, por exemplo os que investigam trabalho escravo, a arma da defesa é a notícia. Quando as coisas são noticiadas eles se protegem e ao mesmo tempo, numa sociedade que exige ser informada, isso também atende a uma demanda social concreta. Nós queremos saber das coisas. Há excessos, há equívocos, mas de uma maneira geral, o que acontece é a manifestação de um cenário novo em que a notícia é utilizada pelos sujeitos sociais, de forma competente, para realizarem suas ações mais importantes. Que são ações discursivas, não são ações materiais. Quando você faz uma coisa para ser notícia, vai interferir na realidade das pessoas, não é a materialidade do fato, mas é o discurso que circula socialmente em forma de notícia. Hoje o mundo é discursivo, cada vez mais argumentativo. Mesmo a informação quando é dada tem que ter já algum potencial de explicação porque as pessoas querem compreender as coisas. A notícia é hoje uma forma de viver e sobreviver no mundo. Porque o mundo se institucionalizou. Eu tenho 83 anos e antigamente, quando era repórter, antigamente, eu falava com pessoas. Hoje o repórter tem que falar com as instituições. Quem gera o conteúdo são as instituições. Os sujeitos sociais, os usuários do jornalismo, eles se tornaram muito competentes e a notícia, para ser eficaz e produzir os resultados, ela tem que ser confiável.O jornalismo é uma linguagem que precisa ser acreditada, senão fracassa. Mas este é um cenário de conflitos. Quem faz a mediação jornalística tem que ter um senso de responsabilidade muito alto, daí a questão ética. A ética é o nome que se dá ao universo de valores, que portanto deve ser a razão de ser da ação jornalística. E essa razão de ser se concentra no direito do outro: direito cultural, cívico, político, do cidadão. Não podemos falsear a linguagem nem fraudar os fatos. Isso é muito difícil hoje. O jornalismo é pressionado por uma teia de interesses conflitantes e os mais competentes frequentemente levam vantagem. Por isso acho que o jornalismo impresso tem uma missão nova a cumprir, de alta responsabilidade, que é de elucidar os fatos, as divergências, para que o cidadão possa se situar dentro do seu espaço de viver e conviver, na missão de viver e sobreviver. Aparentemente, o jornalismo é cada vez mais importante e a profissão de jornalista é cada vez menos importante. Mas não é tanto assim. A possibilidade tecnológica que hoje existe, de qualquer agrupamento humano, qualquer instituição, qualquer ONG produzir fatos noticiáveis, isto é uma maravilha. É um grande avanço da civilização, que capacita as pessoas a formatar e socializar os seus próprios discursos.

OP
– O senhor que o que está em xeque não é o jornalismo, e sim a profissão. Mas cada vez mais será necessário esse apurador, analista...
Chaparro – Vai precisar, claro. E os grandes jornalistas são grandes porque têm essa competência.

OP – Todo mundo passou a ser produtor de informação, mas nem toda informação é boa.
Chaparro – Por isso temos que checar. Se formos rigorosos, só podemos publicar aquilo que temos a certeza que é verdadeiro. Se um cara diz que fulano roubou, qual a certeza que você tem? Que fulano de tal disse que o outro roubou, mas você não tem a certeza que o outro roubou. Então se você levar para a manchete a afirmação como se fosse do jornal, mesmo que esteja com aspas, você está cometendo uma fraude. Você está insinuando ao leitor uma coisa da qual você não tem a certeza. Isso é um grande problema. Porque para vender jornal ou para aumentar audiência, na televisão isso é uma tentação muito grande, às vezes se comete esse tipo de coisa,insinua que o outro é culpado mesmo que não se tenha certeza. São cuidados éticos e deontológicos, mas o importante da ética é que você tem que ter razões de ser para sua ação. Por que faço essa reportagem? É para vender jornal ou para expor à opinião pública uma grande injustiça ou uma grande fraude? A ética é a fonte das razões. Vou ilustrar o que estou dizendo, para você ver a diferença entre a ética e a norma. A ética tem que ser sempre o âmago da norma. Quando você tem uma norma, seja ela deontológica, legal, penal, se essa norma não tiver como âmago um direito, um princípio ou valor, ela é apenas um mecanismo de controle. Por exemplo, se eu mato alguém, existe uma lei que diz “você vai pra cadeia”. Mas vou pra cadeia porque existe um valor chamado direito à vida, que é o âmago da lei. Se eu matar em legítima defesa, não vou pra cadeia porque o âmago da lei é também o direito à vida, o de proteger a minha vida. Esta relação de causa e efeito entre o valor e a norma é uma coisa essencial e, nesse entendimento, temos que perceber que causa e efeito não são coisas paralelas. São coisas que compõem um todo. Por isso, sempre que pautarmos uma matéria, temos que associar a nossa criatividade a uma perspectiva de valor. O que está em causa? Por que estou fazendo esta matéria? Qual a razão de ser desta matéria? Isto vai enriquecer a pauta jornalística.

OP – Então estamos atravessando uma crise de credibilidade?
Chaparro – Claro, sem credibilidade não há jornalismo. Penso que o jornalismo pertence ao universo dos conflitos. Se não há conflito, não há notícia. Portanto, o jornalismo está numa grande luta de interesses, sempre está. Por isso é muito importante zelar pela autenticidade da notícia, pela veracidade das coisas. A linguagem jornalística tem que ser confiável. Você não compra jornal no qual não acredita, não assiste a um telejornal no qual não acredita. Você não quer a sua notícia num jornal que pode vender muito, mas no qual não se acredita. A essência da linguagem jornalística é a credibilidade. As próprias técnicas que aprendemos na faculdade e no próprio exercício profissional são tributárias da credibilidade do jornalismo. Onde aconteceu? Quem disse? Que horas foi? Quem testemunhou? Onde está o documento? Isto são comportamentos profissionais tributários da confiabilidade da linguagem jornalística. É a sociedade que precisa disso, por isso o jornalismo tem que ser entendido como um bem público. Isso dignifica a profissão.  Temos que imaginar que o conceito da profissão de jornalista não pode ser mais aquele de antigamente. Quando eu quis ser repórter, só imaginava essa possibilidade se trabalhasse numa grande redação. Isso não existe mais. A profissão de jornalista se organizou numa estrutura nova que não está sendo estudada. Popr exemplo, o jornalismo na fonte é tão importante quanto o jornalismo na redação, porque é na fonte que se geram os conteúdos. É importante que haja bons jornalistas na fonte. Tô inclusive começando a entrar num grupo que se propõe a estudar uma nova organização da profissão de jornalista, usando como modelo inspirador a organização dos operadores do direito. Os advogados trabalham em vários planos e são também profissionais em território de conflito. O jornalista também é um profissional de território de conflito. Precisamos organizar a nossa profissão para ela estar adequada às solicitações dos conflitos que estão aí, movendo o mundo e a sociedade. Isto é uma discussão nova que precisa ser feita. A crise no jornalismo é inevitável. Ele está no meio do conflito, está sempre em crise. Se você for ver a história da reportagem, ela surgiu porque quando o telégrafo passou a ser usado pelas agências noticiosas e se acelerou a velocidade e o alcance da notícia, passou a haver uma demanda por explicação. Aí surgiu a reportagem no final do século XIX, e ela marcou todo o jornalismo no século XX. Penso que hoje devemos estar atentos cada vez mais às novas demandas sociais por informação, explicação, contextualização, debate, divergência. E esta teria que ser uma exigência nova que a maioria das redações não atende, que é a exigência de haver cérebros pensantes nas redações. Penso que a redação é movida pela pressão dos horários. Precisaria haver um mecanismo novo, para que o conteúdo a ser oferecido aos leitores fosse o resultado de uma capacidade inteligente de dar significado aos relatos.

OP
– Esse grupo que o senhor está montando vai reestudar a fonte?
Chaparro – É um grupo pequeno. Estamos começando uma conversação, para propor num congresso uma estruturação nova da profissão de jornalista. Não há nenhuma ideia ainda, começamos a discutir apenas em pequenas conversas de um ou outro. Já tenho conversado, por exemplo, com o Eugênio Bucci (jornalista, professor da ECA-USP) sobre o assunto. Mas existe essa ideia de que o modelo inspirador seja a organização profissional dos operadores do direito.

OP – Seria algo mais normativo?
Chaparro – Não. Seria mais conceitual. Por exemplo, há nas redações um preconceito grande com jornalistas que trabalham nas fontes, nas assessorias de comunicação. Os manuais de redação, o da Folha por exemplo, diz coisas como suspeite da fonte, desconfie da fonte. Ora, a fonte é um sujeito jornalístico. O jornalista que trabalha na fonte tem que ser o educador da fonte. Assim como o advogado é um educador da instituição onde trabalha. O editor tem uma tarefa específica, responsabilidades próprias. Enfim, há hoje um conjunto de atividades em que estão envolvidos os jornalistas. Nós antigamente só lidávamos com a divulgação de conteúdos. Hoje temos que lidar com a geração de conteúdos. E frequentemente essa geração está associada também a uma perspectiva de socialização dos conteúdos. Quando há um acontecimento, com cobertura ao vivo pela TV ou rádio, você ao mesmo que cuida do conceito e da estruturação do conteúdo, tem que cuidar da difusão desse conteúdo. Isso é uma competência nova que o mundo novo exige do jornalista. Você não é apenas um narrador, mas também um inventor de histórias, um criador de conteúdos. Temos que estudar o mundo tal como ele é e como está usando o jornalismo, as experiências concretas que o fazer jornalismo produz no dia a dia das atividades jornalísticas. Temos que observar isso e saber até que ponto há realmente a construção de uma exigência de novas competências para a profissão.

OP – O senhor hoje confia em que meios de comunicação ou em que jornalistas?
Chaparro
– Bem, é um pouco complicada essa resposta porque eu assisto a vários telejornais, leio vários jornais e articulistas e tenho também minhas próprias informações. Eu confio por exemplo, embora discordando frequentemente, em Jânio de Freitas (articulista da Folha de S.Paulo). Hoje nós temos bons analistas na imprensa. Há bons repórteres. Eu não gosto, por exemplo, do jornalismo da Veja. Eu critiquei. Estou até preparando uma matéria para o meu blog sobre a Veja. Mas o que ela diz dificilmente é desmentido, só que ela faz um uso inconveniente das informações. Ela confunde argumentação com narração e com isso confunde o leitor. Ela faz campanha frequentemente, em vez de fazer jornalismo. Campanha a favor ou contra, que não é jornalismo. Eu sou muito crítico, assisto a muito telejornal. Você pode assistir a um telejornal orientado pela seguinte pergunta: qual é a notícia deste telejornal que não tem por trás uma fonte organizada? E você chega facilmente à conclusão que todas as notícias hoje têm uma fonte organizada por trás. Isto muda o conceito do jornalismo, muda o entendimento da complexidade do jornalismo. A gente tem que inserir o jornalismo no mundo real, nos conflitos deste mundo real. Não adiante ficarmos idealizando aquele jornalismo romântico dos tempos antigos que não existe mais.

OP – O senhor imagina como estará essa produção jornalística daqui a dez anos?
Chaparro – Não, não dá para imaginar. Até porque a tecnologia e a experiência prática, real, do fazer está sempre à frente da capacidade dos conceitos. Darcy Ribeiro (antropólogo, 1922-1997) produziu um livro histórico chamado Processo Civilizatório, em que ele fez uma releitura da experiência humana de viver e chegou à conclusão de que os avanços da civilização não se dão por lutas de classe, mas por revoluções tecnológicas. Elas alteram continuamente as relações humanas e sociais e as estruturas humanas e sociais. Produzem formas novas de viver e conviver que não estão previstas teoricamente nem conceitualmente. É a própria experiência de viver que vai produzindo essa configuração sempre renovada e renovável das relações e das estruturas humanas. O jornalismo hoje é usado até por meninos de escola que sabem que para existir precisam dizer. E que não basta dizer, é preciso saber dizer e socializar o dito. O jornalismo virou uma linguagem de intenso uso social. Você não tem hoje ninguém que não se utilize do jornalismo, ou por ser jornalista ou por ser leitor, telespectador ou fonte. Isto é complexo.

OP
– A reinvenção do jornalismo ainda está em andamento?
Chaparro – Faz parte da vida, é a reinvenção das formas de viver e conviver. Andei estudando há poucos dias para um curso que estou preparando de iniciação ao jornalismo online e estudei as teorias de tempo e espaço. Elas são todas fundamentadas num entendimento concreto de espaço e de corpos. É o espaço que acomoda os corpos, portanto, quem determina espaço são os corpos. Isso não existe assim mais. Como a gente define o mundo atual, em que a derrubada das torres de Nova York foi vista pelo mundo inteiro e mudou o mundo imediatamente? Mudou as relações de poder, alterou profundamente a ordem universal. Onde estão espaço e tempo? Mudou esse conceito, tem que estudar novamente essas coisas? E isso ainda não estamos estudando nas faculdades de comunicação. Não estamos.

OP – O que o senhor mudaria nas faculdades de comunicação? Reclamava-se muito que elas eram distantes do mercado.
Chaparro – Eram. Hoje sou um professor aposentado, estou relativamente desatualizado dessa atividade de pesquisar para fins acadêmicos, mas alguma coisa eu faço. Para entender o jornalismo, eu observo o jornalismo. Mais do que ler livros e entender a complexidade teórica das coisas, eu observo o jornalismo porque o saber produzido no fazer jornalístico é um saber fundamental. Acredito que a grande caminhada do ensino do jornalismo e de qualquer área do conhecimento tem que fazer a fusão da teoria e a prática. Elas têm que se constituir num todo. Teoria sem prática é tiroteio de cego, assim como prática sem teoria também. E para saber fundir teoria e prática temos que saber fundir o saber produzido no mercado profissional com o saber produzido na academia. Um precisa do outro. Nós temos um espaço nas universidades onde esse encontro se dá: na pós-graduação lato sensu, aqueles cursos mais voltados para a formação profissional. É um espaço novo que está fazendo essa fusão. Isso não está sendo estudado, pelo menos não conheço nenhum estudo, mas tô convencido que se produziram grandes avanços nessa aproximação entre o meio profissional e o acadêmico.

OP – O Rosental Calmon Alves (jornalista e professor) fala do jornalismo empreendedor, de se descobrir novas áreas de atuação.
Chaparro – Uma nova organização conceitual da profissão tem que ser levada em conta. Hoje se tem colunistas importantes que não são empregados. Tô lembrando aqui do (Leonardo) Sakamoto, por exemplo, que tem um espaço próprio e é um jornalistaimportante, uma referência. Foi meu aluno. É independente e tem a credibilidade que ele construiu. Há um mercado muito amplo que a internet criou. Eu tenho meu blog, faço minhas coisas lá. Qualquer um pode ter seu espaço para difundir suas ideias, as perguntas, respostas. É um mundo maravilhoso, mas muito complicado, para compreender e nos movimentarmos dentro dele.

OP
– O senhor veio para o Brasil fugindo da ditadura salazarista. Chegou em 1961 e conviveu com a ditadura militar logo na sequência, a partir de 1964. Como foi esse período profissionalmente?
Chaparro – Foi uma experiência interessante. Eu também fui preso, viu? (risos) Vivi a experiência plenamente.

OP – Lá e aqui?
Chaparro – Lá não. A ditadura do (ditador português António Oliveira) Salazar foi muito mais inteligente que a ditadura brasileira. A censura do Salazar foi muito mais inteligente e eficaz do que a que se praticou aqui. No Brasil foi uma censura burra. Por exemplo, faziam um corte e entrava um poema, uma receita de bolo. O efeito era pior que uma notícia. Colocar censor numa redação era uma opção burra. Na censura do Salazar ninguém conhecia o censor, mas ele tinha um poder irrecorrível. O qu cortasse estava cortado. Aqui funcionou muito mais como repressão a Lei de Segurança Nacional do que a censura. Em muitos aspectos, a censura aqui foi uma brincadeira, na minha opinião. Conheci bem a censura do Salazar.  As coisas e as épocas foram diferentes, mas foi uma experiência muito rica também. A maneira de enfrentar a ditadura, de conviver com os limites que a censura impunha. Eu vim para o Brasil em 1961 atraído pela perspectiva de fazer jornalismo num país onde havia democracia e liberdade. Essa coisa da liberdade é muito relativa. Não sei quais as vossas idades, provavelmente não se lembram que naquela época que vim para o Brasil jornalista não pagava imposto de renda. Jornalista tinha os empregos públicos que quisesse, viajava de graça, ganhava jeton nas repartições públicas onde fazia cobertura. Esse romantismo que cercava a profissão na época e a questão da liberdade, tudo isso é muito relativo. Como você vai criticar uma assembleia legislativa onde ganha jeton? E era assim. É preciso desmitificar isso de que o jornalismo de antigamente era melhor que o de hoje. Não foi melhor. Quando cheguei, fui para Natal (RN).

OP
– O senhor veio a convite de dom Eugênio Salles (1920-2012, cardeal, ex-arcebispo do RJ, bispo de Natalem 1961). Por que ele o convidou?
Chaparro – Havia uma obra social muito importante em Natal, alfabetização pelo rádio, sindicalismo rural, cooperativismo. E havia um jornal da diocese, de sacristia. Eu vim convidado para ajudar a mudar o jornal, a integraro jornal numa discussão social nova. E deu certo. Fiquei lá três anos. O jornal era muito pobre, tecnologicamente superado, sem dinheiro pra nada. Chamava A Ordem. Nós ganhamos em três anos quatro prêmios Esso (por seis décadas, o mais importante do jornalismo brasileiro). A gente fazia jornalismo. O jornal passou a pautar a discussão pública em Natal. A primeira grande dificuldade que precisei enfrentar foi proibir os repórteres de ganhar jeton ao fazer uma cobertura. Foi uma discussão danada. Aquela aparente democracia no jornalismo era realmente uma grande fraude. A revista O Cruzeiro, que é um ícone daquela época, aquilo era tudo matéria paga disfarçada de reportagem. As coisas não pioraram. Melhoraram. Por mais problemas que tenhamos hoje.

OP
– E dom Eugênio conheceu o senhor em Portugal?
Chaparro – Foi. Eu era jornalista profissional num vespertino que tirava três edições por dia. E era militante e dirigente de um movimento chamado Juventude Operária Católica (JOC). Tínhamos um jornal, vendido na porta de fábrica, que era muito censurado. E alguém falou a dom Eugênio da minha experiência. Tinha a formação católica, experiência grande de militância católica e ao mesmo tempo jornalista. Quando ele me convidou, vim atraído com a perspectiva de fazer jornalismo num país de liberdade. Tive algumas desilusões, mas também fiz coisas como essa de proibir repórteres de ganhar jeton. Eu ganhei quatro prêmios Esso e, talvez por isso, fui convidado para montar a área de comunicação da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste) em 1964. Quando o João Gonçalves de Sousa, que é cearense, assumiu a superintendência. Não sei por quê, aceitei. A primeira coisa que fiz lá foi dizer aos jornalistas credenciados, quando abri a assessoria e eles me encostaram na parede para perguntar quanto iriam ganhar – esse era o jornalismo da época – e eu disse “vocês não vão ganhar nada porque isto é um órgão público, precisa ser criticado e se eu pagar a vocês, vão criticar o quê?”. Isto criou uma dificuldade, uma pequena guerra, porque eles queriam ganhar dinheiro. Eles acabaram conseguindo um acordo que o jornal pagaria a eles a comissão dos editais. O repórter credenciado passou a receber a comissão dos editais da Sudene. Mas eu não paguei um tostão, por uma questão de coerência.

OP
– O que ainda motiva o senhor na profissão, aos 83 anos de idade? Onde o senhor busca esse estímulo?
Chaparro – (Risos) Eu só olho para o futuro, não olho para o passado. Não tenho saudade de nada, mas tenho projeto para tudo, vários projetos. Agora estou trabalhando em cursos para o online, de educação à distância, tenho um blog, tô escrevendo livros. Enfim, acho que tenho a obrigação de socializar o que imagino que sei, o que posso discutir e ensinar. Penso que tenho, aos 83 anos, algumas vantagens. Como a saúde permite um bom uso da cabeça, então a mais-valia que a experiência nos dá é muito grande. E vamos em frente. Acho que não faço isso para ganhar dinheiro. Faço para socializar as coisas. Acho que a gente tem obrigação disso. Ganho uma aposentadoria que dá para viver e, ao contrário do que pensam, não acredito que minha aposentadoria é aquilo que paguei. Quem tá pagando minha aposentadoria são os caras de hoje, que estão descontando. Assim como paguei a dos outros. Tenho condições de retribuir, de ter meu espaço na sociedade, dar minha contribuição. Acho que é um dever que tenho.

PERGUNTA DO LEITOR


Miguel Macêdo, jornalista e professor  do Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7)
 
Pergunta - O jornalista Martin Baron, editor do Washington Post, em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2016, foi perguntado se não achava que a imparcialidade tem sido um valor em baixa para quem busca notícias nas redes sociais. Ele respondeu que não sabia se, em primeiro lugar, há de se buscar a imparcialidade primeiro. E completou: “O prioritário é trazer a verdade e chegar a uma conclusão”. O senhor, que vem pesquisando as transformações que as tecnologias produzem, concorda com esta afirmação do editor do jornal estadunidense?
Chaparro - Sobre a questão da imparcialidade, sou bem menos hesitante do que o Martin Baron. Na minha opinião, a imparcialidade é uma opção impossível e indesejável no jornalismo – e isso porque, no nosso ofício de narradores, não há como ser neutro diante de conflitos e contradições que colocam em jogo questões éticas relacionadas com o primado dos direitos humanos. Não podemos ser neutros diante da injustiça, da fome, do desemprego, da exclusão social, da violência, da ladroagem, da fraude, do aviltamento da dignidade humana. Por isso, a virtude essencial do jornalismo terá de ser a independência, não a imparcialidade. Só com independência poderemos ser narradores verazes, precisos e honestos, tendo em vista o aperfeiçoamento das relações e das estruturas sociais – e o que quero dizer é o seguinte: para o bom jornalismo, os conflitos que interessam à democracia e ao jornalismo sempre têm três lados, porque a sociedade faz parte deles. Com seus ideários e valores, a sociedade é parte inevitável dos conflitos jornalisticamente relevantes. Está, portanto, nos valores e nas razões da sociedade o lado dos conflitos que deve funcionar como fonte de critérios para o agir jornalístico.

PERFIL:
Português, 83 anos, Manuel Carlos Chaparro é doutor em Ciências da Comunicação. É membro do conselho curador da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Foi repórter, editor e articulista em vários jornais e revistas. Iniciou a carreira no jornalismo em 1957, em Lisboa. Lá, atuava como líder do movimento Juventude Operária Católica (JOC). Em 1961, a convite do então bispo de Natal (RN), dom Eugênio Sales, mudou-se para o Brasil. Até 1989, dedicou-se à comunicação empresarial e institucional. Só se graduou em jornalismo em 1982. Lecionou de 1984 a 2001, quando se aposentou na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Publicou quatro livros. Mantém o blog O Xis da Questão (oxisdaquestao.provisorio.ws).

 

52 MINUTOS


SOTAQUE. A ENTREVISTA COM CARLOS CHAPARRO FOI FEITA POR TELEFONE NO FIM DA TARDE DE TERÇA-FEIRA, DIA 3. DUROU 52 MINUTOS. SEU SOTAQUE LUSO JÁ É BEM DISCRETO.

 

RINDO DE SI


CURSOS. CHAPARRO DIZ QUE, CERTA ÉPOCA, TENTOU PRODUZIR CURSOS ONLINE POR CONTA PRÓPRIA. HOJE RI: ADMITE QUE SE DESCOBRIU “SEM COMPETÊNCIA PARA VENDER NADA”.

 

ONLINE


AULAS. A PARTIR DE FEVEREIRO, DOIS CURSOS DE CHAPARRO - INICIAÇÃO AO JORNALISMO E ARTES DO BEM ESCREVER - SERÃO OFERECIDOS ONLINE PELA EMPRESA WEB AULA.

 

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