[an error occurred while processing this directive][an error occurred while processing this directive] Carraspanas e carpideiras | O POVO
Audifax Rios 02/11/2012

Carraspanas e carpideiras

Os rituais da morte guardam uma unanimidade: o pranto incontido e a gritante sensação de perda
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Desde a mais remota antiguidade, os funerais são cumpridos com relativa naturalidade, a morte é uma data como as outras, nascimento, batizado, casamento, com a diferença de conter cerimônia onde, em vez de alegria, pontifica a dor. Embora tribos primitivas, ontem e hoje, paramentem os atos solenes com danças e outras manifestações mais descontraídas que não a atmosfera pesada dos velórios, enterros, missas rememorativas. Aqui e alhures, guardando as evidentes discrepâncias de crenças e costumes, os rituais da morte trazem a marca inconfundível, seja na sobriedade do ambiente, no modo de trajar dos partícipes, no inusitado dos acessórios. E uma unanimidade: o pranto incontido e a gritante sensação de perda.


Muitas são as maneiras de se honrar um morto querido e indicar-lhe o adequado caminho definitivo. A corriqueira é o sepultamento do indigitado a sete palmos do rés do chão ou, para os bem aquinhoados, túmulos construídos em alvenaria com catedrais matrizes e divinais pretensões, um manifesto elo com a mansão celestial. Os egípcios erguiam pirâmides descomunais apontando para o juízo final e eram vestidos a rigor para a divina travessia: depois de mumificados eram acomodados em suntuosos sarcófagos, espécie de estátua, máscara mortuária de corpo inteiro. Já nossos índios usavam modestos potes de barro, sem floreados ou pedrarias, nenhum aparato decorativo e eram enterrados em pé como se supõe merecer um homem de fibra, altivo até o fim. O mais comum entre nós é o velho paletó de madeira, caixão entalhado a capricho, esquife se o distinto é abastado, ou um comezinho garajau coberto com pano preto (azul para criança e moça donzela). A viagem pode até ser feita numa prosaica rede de quadro se o finado há muito já havia partido e não sabia. Cheguei a presenciar lá pelas brenhas de meus cafundós o enterro de um anjinho que ia ter com os demais harpistas nebulosos alojado numa rústica telha de biqueira.


Na capela do cemitério velho da minha cidade jazia um caixão de muita estrada destinado a transportar para a última morada os infelizes menos apaniguados. Pertencera a uma obesa senhora propensa a destinar seu último transporte, também, a outros desafortunados. Comprido, largo e de pé direito considerável, comportaria todo tipo de passageiro e assim estaria cumprida, de sua parte, uma das obras da misericórdia aqui na terra como no céu.


A propósito, a primeira capa de livro criada por este escriba foi sobre o assunto: Ritos fúnebres do interior cearense, de Cândida Galeno, editado em 1977, uma pequena monografia premiada com menção honrosa no Concurso Mário de Andrade, de São Paulo. A obra abordava todo o cerimonial, desde o tratamento do corpo até o sepultamento, passando pelo vestuário, guarda, despedidas, inselenças, sentinela, comes e bebes, namoros e comentários que tendiam para o absurdo e o lendário quando não ofensas à dignidade do honrado extinto, geralmente manso e humilde de coração.


Hoje em dia as coisas estão bem mais práticas e dispensam todo um protocolo já acolhido nos domínios do folclore. Principalmente nas grandes cidades onde há carência de tempo e espaço até para os vivos, quem dera para os que já passaram dessa para melhor. Minha netinha primogênita, Júlia, mora em urna coberta por grama onde explodem flores em profusão. Meus amigos que acharam de ir tão apressadamente preferiram a fogueira e cinzas foram espalhadas em duas águas de minha estima: o verde mar de Iracema (Airton Monte) e a doce correnteza do Acaraú, o rio das garças (Lustosa da Costa). As músicas entoadas no presente são os últimos sucessos do cancioneiro popular, benditos e ladainhas já bateram à porta da casa do esquecimento: “Uma inselença das almas,/ Quem nos deu foi a Mãe de Deus,/Adeus, irmão das almas,/ Ó irmão das almas, adeus”.


No velório do interior, que é sentinela ou quarto, rola muito café e cachaça que é para manter os presentes acordados e as carpideiras excitadas. Alguns devoram o indefectível caldo de caridade e muito romance foi materializado nessas circunstâncias adversas: vela benta na falta de poético luar. O anedotário é peça fundamental e é possível que muito mais palavra profana seja dita que reza santa orada.


Finalmente o séquito saindo pelas ruas da cidade, se o defunto for de altas senhorias merece até matraca, banda de música e gato pingado; depois de missa de corpo presente. Se um mero vivente sem ter onde cair morto vai acompanhado da família pesarosa em luto fechado, coroas cheirando a castiçal e lágrima borrando o roxo das faixas saudosas. E vale citar aqui mais uns versinhos desse jaez compilados no dito livrinho, desta feita de autoria do poeta Soares Bulcão: “A chave de fita escura/Com que fechei teu caixão,/É a mesma da fechadura/Que trancou meu coração.


E falando em poeta, o nosso sonetista Padre Antonio Tomás deixou assentado em seu testamento uma vontade: ser sepultado na igreja matriz de Santana contanto que não houvesse qualquer referência sobre sua eterna presença naquele recinto. Cumpriram seu desejo, assentaram uma lajota branca entre as cruzes do piso da nave lateral e, assim, o sono eterno do padre poeta não era perturbado. Agora, a família resolveu trocar o insólito mosaico por uma placa com referências, nomes e datas. Repouse em paz, meu poeta e deixe-nos com seu estro iluminado. Como este último terceto de um soneto feito a pedido de Dom Joaquim José Vieira, seu padrinho: “Que Deus vos dê, possais nesse momento,/Fitar no céu o olhar e o pensamento,/Morrer sorrindo como os justos morrem”.

 

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