[an error occurred while processing this directive][an error occurred while processing this directive] Rachel e o luar | O POVO
ANA MIRANDA 11/08/2013

Rachel e o luar

As noites precisavam ser escuras, não era permitido se acender luzes nas casas, nos edifícios
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Nasce uma lua de agosto, cheia, fascinante, a lua de agosto parece a mais bonita, como se mais perto de nós e menos oblíqua, menos partes sombrias e maior esplendor. Para quem vive no sertão basta deitar na rede numa varanda e cantar ao toque da viola, “Não há, ó gente, ó não, luar como este do sertão...”, o escuro das paisagens, as raras luzes de uma casa de taipa aqui e acolá... divagam as sombras descuidadas e o luar se apossa de tudo, cheio de saudades, brilha a ponto de apagar estrelas, estende no mundo a toalha branca de uma luz que é sombra. Quem vive em cidade grande se afasta do luar, mas a lua é para todos, e se for curioso vai ver numa brecha entre edifícios o disco prateado, ou acima de telhados, atrás da chaminé da fábrica, ou a lua nascendo cheinha saindo do mar toda formosa ladeada por coqueiros e rubra, depois dourada, depois de prata, derramando suas mutações luminosas, e o mar e os telhados e as chaminés e as brechas vão se encarnando, dourando, prateando... dizem até que existe a lua azul. Sempre a noite de luar, o luar, a lua, evocam namorados, promessas de amor, poesias, influências, sonhos... Mas não para Rachel de Queiroz.


Uma das mais felizes crônicas de Rachel é sobre a lua. Possui o máximo de lirismo a que ela se permitia, porque chega a evocar a beleza do luar nos horizontes campestres, a alimentar cantigas, a povoar o delírio dos loucos, mas um lirismo efêmero, apenas para enumerar as utilidades da lua, além das marés e dos enamorados. A crônica foi escrita em 1942, tempo de guerra mundial, e a lua de Rachel brilha sobre uma cidade ameaçada: Londres. “Lua de Londres”. As noites precisavam ser escuras, não era permitido se acender luzes nas casas, nos edifícios, os carros iam de faróis apagados, pelas ruas em trevas, os cafés e as velhas cervejarias ruidosas “dos romances nunca esquecidos” ficavam fechados, as janelas cerradas para não passar nem um fio de claridade trêmula. Qualquer luz poderia tornar a cidade um alvo, se avistada do alto, quando passavam os aviões de caça. E nascia uma lua inocente, a clarear asfalto, telhados, contornos, carros, “despindo aos olhos inexoráveis do inimigo a cidade imensa que se envolvia na noite insondável”. Bombas, canhões, mil perigos separavam amantes e exterminavam sentimentos românticos acerca da inefável lua de Deus. Rachel virou a lua pelo avesso, viu um lado seu, oculto e terrível. Mas a culpa não era da lua.


Essa lua, tão natural, nada mais fazia que seu “amável ofício e suas ocupações literárias”, desde milhares de anos, a pacificar a febre diurna das cidades. O luar, mesmo expulso pelos letreiros luminosos, vagava nos parques sombrios metendo-se pelas folhagens, diz Rachel, embelezando “ficticiamente uma pequena pálida flor de algum bazar mal arejado”, a “dar-lhe o seu momento de glória aos olhos do namorado, tornando-a uma aparição inesperada”, ou a salvar um suicida na beira do cais, “comovendo-o com as belezas indistintas da margem oposta...” Essa crônica me comove muito, não apenas por si mesma, a crônica, tão belamente composta, tão poética e ao mesmo tempo impiedosa, mas porque me parece de uma lua confessional. Os livros, as crônicas, seriam raios que se despejam, e o mundo sempre estaria em suas guerras cotidianas, e a guerra cotidiana tornaria a lua incompreendida. Os raios dessa lua taciturna tornariam visíveis os alvos: as palavras, a opinião. Trazendo dores e tormentos. E a culpa seria da lua. Fico pensando o quanto Rachel falava de si mesma ao falar da lua de Londres, com sua “mania de ser a palmatória do mundo”. Poucas vezes um símbolo foi usado de maneira tão sublime, atravessada, sutil. Ah, Fernando Pessoa, na sua Lua também inglesa!


“A Lua (dizem os ingleses) / É feita de queijo verde./ Por mais que pense mil vezes / Sempre uma ideia se perde./ E era essa, era, era essa, / Que haveria de salvar / Minha alma da dor da pressa / De... não sei se é desejar./ Sim, todos os meus desejos / São de estar sentir pensando.../ A Lua (dizem os ingleses) / é azul de quando em quando”.


Lua azul é a décima terceira lua do ano, quando há duas luas cheias num só mês. Ah, e também a Cecília Meireles:


“Tenho fases, como a lua / Fases de andar escondida, / Fases de vir para a rua.../ Perdição da minha vida! / Perdição da vida minha! / Tenho fases de ser tua,/ Tenho outras de ser sozinha./ Ah esses escritores e poetas.../ essas luas...”


ANA MIRANDA é autora de Boca do Inferno, Desmundo, Dias & Dias, Yuxin, entre outros romances

 

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