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08/02/1997 19/10/2012 - 08h12

João Ubaldo Ribeiro: O Sorriso do Lagarto

Nas bicas de terminar mais um livro, João Ubaldo Ribeiro conversa com o Sábado, conta sua história e mostra toda a efusão de um típico baiano do mundo
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Página do Jornal O POVO, publicada em 08/02/1997
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Jornal  O POVO, 08/02/1997

 

Autor: Walter Coe e Rodrigo de Almeida

 

Nas bicas de terminar mais um livro, João Ubaldo Ribeiro conversa com o Sábado, conta sua história e mostra toda a efusão de um típico baiano do mundo

O jurista Manoel Ribeiro era um leitor insaciável. Amante dos clássicos, quase não conseguiu esperar seu filho João Ubaldo fechar cinco anos de idade para incentivá-lo na leitura. O menino, que nasceu na pequena Itaparica, cidade do litoral baiano, não se fez de rogado. Traçou tudo o que encontrou pela frente.

Parece coisa de criança pabulosa. Mas hoje João Ubaldo Ribeiro, menino prodígio que virou escritor de sucesso, diz que aos doze anos já tinha lido alguma coisa de Shakespeare, Machado de Assis, Alencar e outros. Foi assim até a adolescência, quando começou a entender realmente o que lia e a ter lampejos, aqui e ali, de que também escreveria.

O futuro, porém, tornou-se presente após uma passagem pela vida acadêmica - formou-se em Direito - e pelas redações do Jornal da Bahia e da Tribuna da Bahia. "Exibido e tímido", João Ubaldo tinha medo de mulher, a ponto de passar pelo outro lado da rua para não encarar uma saia curta. Sempre se considerou também "meio abestalhado", ao contrário de muitos amigos.

Mesmo abestalhado o filho do seu Manoel até que se saiu muito bem. Seus romances Sargento Getúlio, Viva o Povo Brasileiro e O Sorriso do Lagarto foram publicados em vários países e ele se transformou num dos mais festejados cronistas brasileiros. Para completar, desde 1993, é membro da Academia Brasileira de Letras.

A roda viva às vezes é ingrata e João Ubaldo já passou por maus bocados nos últimos dois anos. Sofreu uma parada cardíaca e o jogaram na UTI, de onde saiu com uma forte depressão. As "bolas" quase o fizeram largar a profissão. A produção, no entanto, parece parcialmente normalizada, e o escritor prepara o seu novo livro, O Feitiço da Ilha do Pavão.

As peripécias de adolescente, a fama, a depressão, a literatura, alguns momentos engraçados porque passou e muita efusão baiana fizeram parte da conversa de João Ubaldo Ribeiro com o Sábado. Com a palavra, o jeito moleque do escritor que, ao falar, parece contar uma piada atrás da outra. Tem, por exemplo, aquela do gari que reconhece o imortal na rua e não se segura: "Ó o sorriso do largato!". Largato mesmo - no melhor estilo espalhafatoso acadêmico.

Sábado - João, você já conversou com a imprensa daqui, agora está falando com o Sábado. Entrevista não cansa, não?

João Ubaldo Ribeiro - Acho um saco entrevista. Eu dou porque também sou jornalista e compreendo as pessoas. E também não tenho razão para não ser simpático com a imprensa. Mas acho um saco, geralmente são as mesmas perguntas... Inclusive já teve gente, uma moça, se eu não me engano da Veja de Salvador, foi lá em Itaparica e perguntou: "o senhor é escritor, não é?" (risos). Mas isso não me deixa inimigo de vocês, não. Já estou acostumado.

Sábado - Diante de uma dessas você perde a paciência?

Ubaldo - Não. Mesmo quando as perguntas são do tipo "quantos livros você já escreveu?". Nunca sei responder a este tipo de pergunta. É de lascar.

Sábado - Bem, pois nós sabemos que você é escritor, certo?

Ubaldo - Já é um começo (risos).

Sábado - E sabemos também que você foi um leitor bem precoce. Aos doze anos, já lia alguma coisa de Shakespeare, Monteiro Lobato, José de Alencar... Isso é verdade ou é lenda?

Ubaldo - É verdade mesmo. Mas eu não lia no original. Li Shakespeare antes dos doze anos. Nossa casa era cheia de livros. Uma coisa impressionante. E aí quando aprendi a ler - e aprendi muito cedo - comecei a pegar tudo o que era livro, sem restrição. Qualquer coisa eu traçava. Só vim entender depois, claro, porque uma criança de sete, oito anos, não iria entender Shakespeare.

Sábado - Você foi uma criança prodígio?

Ubaldo - Eu tomava era muita porrada. Meu pai me cobria de porrada se eu tirasse um sete! Oito ele não gostava (risos). Então acompanhava minha vida escolar com muito rigor. Aí eu era, porque tinha medo de tomar porrada.

Sábado - Você nasceu em Itaparica, mas com que idade saiu de lá?

Ubaldo - Saí logo. Meu pai é alagoano, fez o secundário interno em Salvador, mas depois foi estudar Direito em Recife. Ficou dois anos, deu na veneta e foi para Salvador. E em Salvador conheceu a minha mãe. Mas ele foi ser pretor no interior de Sergipe. Minha mãe ficou grávida de mim, mas meu avô praticamente a obrigou a me ter em Itaparica. Chamaram uma parteira lá famosa e minha mãe disse que ficou apavoradíssima, porque a parteira chegou lá mascando fumo, cuspindo no pinico. E quem disse que eu nascia?! Entalei (risos).

Sábado - Tem algum episódio da sua infância que você nunca falou em entrevista?

Ubaldo - Não. Nunca (risos). Em Itaparica, os adolescentes comiam muita jega. E eu sempre me recusei a comer jega. Bom, não tem nenhuma jeguinha pra contar pra vocês (risos). Talvez eu tenha sido o único da minha geração de Itaparica que não comeu uma jega.

Sábado - Os seus amigos zombavam de você por causa disso?

Ubaldo - Não, não, não. Eu só ficava de fora quando a conversa era jega (risos). Porque tinha as jegas viciadas e eles falavam "ah, porque aquela jega de não sei quem" (risos). Eu tinha um amigo de infância, boa pessoa, (imitando o amigo) e tinha fama de abestalhado mas não era, era muito tímido, o Aderbal. E ele tinha uma jega viciadíssima. Ele soltava um assobio e lá vinha a jega (risos). A gente assistia. Dizem que ele assobiava e a jega já vinha se ajeitando (risos).

Sábado - Com quantos anos surgiu a primeira namorada? E a primeira transa?

Ubaldo - A primeira namorada? Você sabe que eu não me lembro? E a primeira transa, devo ter mentido tanto, que me esqueci. E ninguém queria da turma ser donzelo. Todo mundo dizia: "Ah, porque comi não sei quem..." Difamando primas, empregadas domésticas inocentes (risos). Agora, eu me lembro da primeira paixão. Não correspondida. Um caso de amor dramático que me rendeu um livro. Acho que pra exorcizar isso eu escrevi um livro, onde eu conto praticamente a verdade. É tudo igualzinho. Até alguns nomes eu conservei, como o nome da minha amada, que era Maria Helena. Tenho vergonha de contar até hoje.

Sábado - A gente queria que você fizesse um roteiro bem rápido. De Itaparica pra Sergipe e depois?

Ubaldo - Assim que nasci, me levaram pra Sergipe. Depois o meu pai começou a fazer carreira, morou em outras cidades. Meu pai começou então a exercer funções públicas em Aracaju. Se meteu em política, e política braba, nordestina antiga, de bala. Tentaram matá-lo umas duas vezes. Minha mãe vivia muito nervosa, e meu pai acabou se transferindo para Salvador. Eu devia ter uns onze anos naquela época.

Sábado - E nesse tempo você já queria ser escritor?

Ubaldo - Não, não. Talvez pensasse assim vagamente em ser escritor, mas só como atividade paralela, porque praticamente não existia no Brasil escritor profissional. Não se concebia. Tinha que ter uma profissão decente, pra depois escrever. Mas eu não pensava. Então ficamos em Salvador a minha infância toda. Fiz Direito, porque não se cogitava outra profissão na minha casa. Meu pai não admitia a idéia de eu ter outra carreira. E, na Faculdade de Direito, me meti um pouco em Movimento Estudantil.

Sábado - Quando você começou a escrever sério?

Ubaldo - Aos dezessete anos, meu pai me levou para um jornal sem me consultar, um jornal de amigos dele. Fiquei no jornal e acabei sendo chefe de reportagem. Fiz praticamente tudo no jornal. Aí acabei dirigindo o suplemento literário, no auge dos suplementos literários. Em outro jornal quem dirigia o suplemento literário era o Glauber (Rocha).

Sábado - Foi nessa época que você conheceu Glauber Rocha?

Ubaldo - Não. Eu o conheci no secundário. Éramos amigos. O Glauber era sempre vibrante e eu era abestalhado. Sempre fui muito abestalhado. Até hoje me sinto um pouco retardado com relação à minha geração. Fui o último a namorar firme, já os meus amigos todos tinham casos tórridos. E tinha outra coisa. O meu pai aumentou minha idade pra eu entrar no ginásio. Por causa da obsessão do meu pai, com uns nove anos eu já estava pronto para fazer admissão. Mas não podia, a lei só permitia aos onze anos. Meu pai providenciou uma certidão falsa pra mim, aumentou minha idade em um ano pra eu entrar na escola. Resultado: eu era sempre mais moço que meus colegas. E conheci Glauber. Mas ele só foi da minha turma na Faculdade, pois perdeu ano, se rematriculou...

Sábado - O que fez com que vocês ficassem amigos?

Ubaldo - Não me lembro como é que foi. Eu quis fazer o "clássico", no Colégio Central, que era uma verdadeira universidade, com grandes professores. Era um colégio de nível extraordinário e uma efervescência intelectual muito grande. Vários alunos publicavam jornais, outros faziam ciclos de palestras, havia os comunistas, os integralistas. E o Glauber sempre foi um orador vibrante, com grande eloqüência, e já era respeitado intelectualmente, conhecido e admirado pelas meninas... E eu ficava com inveja. Não éramos da mesma classe, mas me enturmei. As meninas intelectuais, os meninos intelectuais, eu também metido a besta. E acabei me enturmando com Glauber e vários outros.

Sábado - Nessa época, a sua droga preferida já era a bebida?

Ubaldo - Já era. Já era. Eu também fui um pouco geração pré-hippie. E ainda peguei um pouco. Tive amigos que foram hippies, namoradas que foram meio ripongas. Comi algumas hippies, já que elas davam com muita facilidade (risos). E aí fumei maconha, mas não muito. Nunca me entusiasmei muito. E fumava com alguma regularidade.

Sábado - Vocês formam uma geração que estava na Bahia e conseguiu sair de lá. Por algum tipo de intuição, vocês sentiam que o que faziam ou pensavam era alguma coisa que ia ganhar o Brasil?

Ubaldo - Não, porque na realidade eu não saí da Bahia nessa leva de gente daquela época. O que aconteceu de determinante, no meu caso, foi que, em fevereiro de 64, fui fazer esse mestrado nos Estados Unidos. Aí arrebentou o funil em abril. Todo mundo que era de esquerda fugiu. Sendo que Glauber a essa altura já tava procurando o Rio, porque ele precisava de horizontes maiores, cinema é uma coisa complicada. E quando cheguei na Bahia, não tinha mais nenhum amigo meu. Por sinal foi uma coisa desoladora.

Sábado - Quando você voltou?

Ubaldo - Voltei no final de 65. Não encontrei mais ninguém. Fiquei no sufoco, num desespero. Era muito sociável, gostava de dar festa. E fiquei meio jogado fora. Mas continuei na Bahia. Só saí da Bahia já com quase 40 anos. Fui para Lisboa, depois para o Rio. Foi lá que eu fiz muito biscate literário pra me manter.

Sábado - Você ainda não falou do seu primeiro livro. Como foi? Você penou muito?

Ubaldo - Não, não penei nada. Eu morava na Bahia na época. Meu primeiro livro se chamava A Semana da Pátria. Escrevi com uns vinte e poucos anos, mas demorou uns seis pra sair. E não fiz a menor força, quem fez foi Glauber e um escritor que mora no Rio, Flávio Moreira da Costa, que não me conhecia e fez por puro espírito de solidariedade. Glauber morreu sem se esquecer disso (risos). Sempre que ele se lembrava disso ficava puto. É que eu achava normalíssimo publicar, achava que não teria dificuldade nenhuma. Escrevi, era bom pra caralho, por que ia ter dificuldade de publicar? (risos). Pura burrice, ingenuidade. Aí Glauber fez uma força mortal, Glauber veio à Bahia com o primeiro livro ainda sem capa (risos). Foi em minha casa: "Olha aqui, saiu do forno agora", falou mostrando o livro. Eu disse: "Ah, sim. E tudo bem e tal, como é que você tá?" (risos). Ele ficou puto na hora (esbravejando): "Porra, eu batalho o Rio de Janeiro inteiro, enchendo o saco de editor e você diz e tudo bem? Eu trabalho tanto e você caga pra isso? Mas pra mim era tudo normalíssimo (risos).

Sábado - Você falou que se sentia um pouco sergipano, um pouco baiano. E depois que foi para o Rio, se sente carioca?

Ubaldo - Não, eu hoje não me sinto carioca. Mas sou popularíssimo. Gosto imensamente do Rio de Janeiro, que sempre foi de uma generosidade comigo, sempre acima de qualquer expectativa. O Rio de Janeiro já me deu prêmio literário com uma grana poderosa. Escola de samba já me botou no enredo, já me deram tudo o que foi coisa. É de uma generosidade extraordinária.

Sábado - Com essa popularidade, você é reconhecido na rua...

Ubaldo - Na rua sou reconhecido e paparicado regularmente, a ponto de não poder, por uma questão técnica, andar no calçadão. Não posso andar no calçadão de Ipanema ou do Leblon para não ser grosseiro com as pessoas. A toda hora estão me parando (imitando) "João Ubaldo, Elizabeth, ó quem tá aqui! Eu vou apertar sua mão, olha, Beth, Beth vem cá, é o João Ubaldo!"

Sábado - Você contou uma história engraçada uma vez, que todo mundo lhe reconhece na rua, mas quando você entra numa livraria pra perguntar qualquer coisa, não é reconhecido.

Ubaldo - Já foi assim, mas agora não tá mais não. Eu passava pela rua e eu saía coberto de glórias (risos). Aí vou andando e entro numa livraria: "Não, não tem este livro, mas nós mandamos buscar pro senhor. Escreva aqui o seu nome que nós pedimos o livro". João Ubaldo Ribeiro. "João Paulo?". Não, Ubaldo. "Com H?" (risos). Eu ficava puto (risos). Desmanchava minha glória imediatamente. Agora não tem mais isso não, porque eu apareço muito na tevê. Depois do episódio do coração, entrei em depressão.

Sábado - Por que?

Ubaldo - Fiquei numa tristeza tão grande que contada agora parece mentira. E meus hábitos de dormir ficaram muito afetados. Então, numa noite dessas sem dormir, fui comprar cigarro numa banca perto da minha casa. Quando estou no meio do percurso, veio um caminhão da Conlurb - N.R.: Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro - com três ou quatro garis imundos, com aquele macacão laranja, e um negão enorme tirou a luva assim e começou a olhar pra mim. Quando cheguei perto ele fez (imita com exagero): "Imortal!" Ahhh, e palmas (risos). Isso foi logo depois que eu entrei pra Academia.

Sábado - E dentro da Academia Brasileira de Letras? Aquela história da troca do chá pelo uísque...

Ubaldo - Não fui eu quem disse isso. Nunca falei isso mas quem levou a fama fui eu. Lá eu vou de vez em quando. Ah, deixa eu contar outra história engraçada, acho que eu nunca contei. Um outro negão, não sei de onde era, se era da Telerj, tava me olhando fixamente, mas nessa época eu já tava acostumado a ser olhado. Quando eu passei por ele, ele disse: "Ó o sorriso do largato!" (risos). "Ó o sorriso de largato!" (risos). É uma coisa muito gratificante você perceber assim o carinho do povo, é muito bom.

Sábado - Como é essa convivência na Academia?

Ubaldo - Muito boa. Tenho vários amigos na Academia, como o Antônio Callado - N.R.: Callado morreria no dia 28 de janeiro -, de quem eu gosto muito. Dele e da mulher dele. São duas pessoas extraordinárias (pausa). Se eu for citar vou acabar esquecendo. Alguns são grandes companheiros. Um deles, que não vou citar o nome pra vocês porque não quero complicá-lo com a mulher, é um senhor, um homem ilustre, que não parece mas tem 80 e tantos anos. E ele estava comigo, numa sessão da Academia, e mastigando a dentadura. O presidente falava, era excelência pra lá, excelência pra cá, e aí ele dizia: "Mas João Ubaldo, sabe o que é que eu gosto mesmo?" Eu digo: "Não, não sei não" (risos). "É buceta! É buceta, João Ubaldo!" (risos). E foi alto pra caramba! (risos). E é gente simpaticíssima. Há um ambiente bastante descontraído, nada de formal.

Sábado - Você falou que a medicação mexeu no seu horário de dormir. E na produção, mexeu?

Ubaldo - Mexeu pra burro. Eu tô com um livro amarrado. A Nova Fronteira me deu um belo adiantamento para eu entregar esse livro no ano passado e até agora nada. E passei uns meses sem poder trabalhar direito porque também arrebentaram os canos do edifício onde eu moro. Mal podia escrever minha crônica. E essa depressão me afetou, que eu não podia fazer nada. Cheguei a pegar o telefone pra dizer ao  O Globo e ao Estadão que não tinha mais condição de escrever minha crônica, não. Minha mulher, coitada, tinha que ficar ouvindo besteira. "Vou morrer na miséria, não vou ter nada. Será que a Nova Fronteira me dá qualquer coisinha no fim da minha vida?" Chorava e a minha mulher: "Mas, João Ubaldo, deixe de besteira, você é um acadêmico!" E eu tremia o queixo, porque achava realmente que não ia escrever mais nunca e, como não tenho emprego, ia ficar arruinado, na famosa rua da amargura. Só via as coisas sob essa perspectiva. Aí era impossível escrever.

Sábado - E como você superou essa fase?

Ubaldo - Superei à custa médica, mesmo. Tive que tomar umas bolas. Tomei uma bola braba e, dentro de alguns dias, já estava bem melhor, mais otimista. Mas eu me viciei nesse remédio. Meu organismo se acostumou. Pra tirar foi uma zona. Meu nervosismo intensíssimo, como se estivesse na iminência de acontecer uma coisa gravíssima comigo. O coração disparava, suando demais. Uma coisa pavorosa. E também era chato pra escrever.

Sábado - Mas esta depressão tinha alguma explicação?

Ubaldo - Não, não se sabe direito, mas dizem que é comum depois que um sujeito passa por uma situação braba numa UTI. Fiz uma crônica chamada "Recordações da Casa dos Moribundos", fazendo uma paráfrase do livro de Dostoiévski, Recordações da Casa dos Mortos. Teve um dia que eu queria morrer logo: "Eu quero morrer nessa porra!" E isso já era sinal da depressão. Dizem que isso acontece com o sujeito que tem uma parada cardíaca. É a primeira vez que você tem um encontro com a morte. Deve ter sido por isso que fiquei deprimido. E eu era tão viciado em fumar! Pra largar, ah, várias tentativas. Eu parava de fumar três dias, no quarto dia sentia uma burrice, uma irritabilidade muito grande. Ia num boteco, comprava um cigarrinho. No dia seguinte, já comprava três. Pronto, três. Um de manhã, outro ao meio-dia e outro de noite. Aí comprava os três e acabava os três logo de manhã. Depois descia e comprava mais quatro. Pronto, só mais quatro. Tá perfeito. Que porra nenhuma! Daqui a pouco tava eu comprando um maço de cigarros. Aí descarava.

Sábado - E como você deixou de fumar?

Ubaldo - Usei um truque. Comecei a contar isso no jornal. E comecei a ser fiscalizado no Rio de Janeiro inteiro (risos). Eu fui num boteco, "me dá dois cigarros". A resposta (imitando português): "Mas doutor? Vais fumar?!" Aí passava na rua as pessoas paravam (imitando as pessoas): "Mas, bonito, hein? Bonito!" (risos). "E com esse coração e o cigarro! Mas que vergonha!" (risos). Aí eu dizia: "Não, mas é só um!" Isso ajudou muito. Quando eu fui pra Alemanha - a minha mulher ainda fuma - a moça da Varig disse assim: "Ah, é o João Ubaldo? Então é não-fumante". A minha mulher: "Não, é na classe dos fumantes". A moça (imitando): "Mas que horror!" (risos). O fato é que eu continuei a sentir vontade de fumar, mas deu pra segurar.

Sábado - E a produção, hoje, está melhor?

Ubaldo - Agora acho que está, sim. Até melhor do que antes. E com esperança com o livro que estou escrevendo, que eu tava achando uma merda. Aí mostrei a Geraldinho Carneiro, que é poeta, um homem de letras, já barbudo e tal, e é meu amigo. E Geraldinho adorou o que leu. E adorou com sinceridade. Mas achei que ele tava querendo me agradar. Aí lia, achava uma bosta. Zé Rubem (Rubem Fonseca) pediu pra ler. "Eu vou na sua casa e vou pegar esse livro pra acabar com esse negócio. Vou ver se tá ruim mesmo". Levou o livro e no dia seguinte toca o telefone: "Ó, seu filho da puta, se você não terminar essa porra desse livro, não me dou mais com você, sacana, escroto!". Me xingando todo. "Isso aqui tá uma maravilha..." e não sei que mais lá." E Berenice, minha mulher, que acompanha todos os meus passos, também achando. E mesmo o Zé Rubem falando com toda a sinceridade, minha mulher e Geraldinho, eu tava achando uma merda. "Vou continuar porque já assinei contrato, já tá fechado".

Sábado - Mas o que é que está faltando pra terminar?

Ubaldo - Não sei direito, mas tá faltando um personagem comer uma personagem que ele quer comer (risos). A história se passa em meados do século XVIII. Esse Iopepeu mora numa ilha, onde come gente pra caramba. É porque ele é bonito, gostoso mesmo. E o Iopepeu adora umas negonas, e come as negas com toda a boa vontade. Os maridos das negas adoram quando elas são comidas pelo Iopepeu, porque eles têm a vida mansa, farta. O Iopepeu dá casa, feira, e os caras não querem nem saber se são cornos ou não são cornos (risos). Só que o Iopepeu quer comer uma, chamada Crescência - pô, estou contando o livro todo pra vocês! - e ele só come se a mulher gritar assim: "A ela sem pena! A ela sem pena!" (risos). Se não gritar ele não consegue, que é um trauma de infância dele. E todas gritam (risos). "A ela sem pena! Dá-lhe!" Mas ela não diz, entendeu? E a mãe dela tem muita vontade que ela diga, que é pra se resolver na vida. Então a mãe quer que a filha dê pra ele, pô, o cara é rico! É o maior ricaço da ilha. Aí a menina diz: "Eu dou, mas esse negócio eu não grito".

Sábado - E aí? O que vai acontecer?

Ubaldo - Não sei ainda. É porque às vezes o personagem resolve não fazer certas coisas que o autor quer.

Sábado - Este livro é também meio uma saga?

Ubaldo - Não, não. É uma coisa meio paródia. Eu parodio muito o estilo barroco de narração, o vocabulário. É uma diversão, uma diversão. É um romance. (Pausa) Porra, falei pra caralho.

Maria Teresa Ayres mariateresa@opovo.com.br
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