[an error occurred while processing this directive][an error occurred while processing this directive] Carlos Drummond de Andrade: Quando o poeta brinca de viver | O POVO ONLINE
05/01/1986 28/09/2012 - 08h00

Carlos Drummond de Andrade: Quando o poeta brinca de viver

Para quem conseguia chegar perto, ele afirmava que não era bicho-do-mato, urso, ariranha. Um dia, porém, o gerente da livraria da Rua Vinícius de Morais, então Rua Montenegro, Rio de Janeiro, perguntou-lhe: "O sr. não é Drummond?" Ele respondeu: "Não, sou parecido".
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Detalhe da página do Jornal O POVO, publicada em 29/02/2000
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Jornal O POVO,  29/02/2000

 

Aos 83 anos, lançando dois livros, "O Observador no Escritório" e "A História de Dois Amores", dedicado ao público infantil, Carlos drummond de Andrade é um homem bem-humorado, sem "nenhum sentido de propriedade" e que não faz planos para o futuro. "Quero preparar meu jazigo no São João Batista".
Quarenta livros publicados, escreve desde criança, "começei com aquele negócio que as professoras chamam de redação, quando estava na escola pública. Me disseram que tinha jeito e fiquei estimulado", mas acredita que sua verdadeira profissão é o jornalismo. poeta maior é título que odeia e acha que sua literatura "não tem visão universal, maior. essa sim transforma o autor num Cervantes ou dante. eu escrevo sobre mim mesmo e isto não traz grandeza alguma".

- Poeta; sua primeira fase foi centrada em si mesmo. Depois sua visão de mundo foi se universalizando, a partir de "Rosa do povo". Como aconteceu essa modificação?

- A primeira fase foi egoísta, normal em todo mundo. Quando começamos a viver, achamos que o mundo está concentrado em nós, que somos o ser mais importante do Universo. mais tarde, vemos que não significamos apenas uma partícula infinitesimal de tudo que acontece. para isso é necessário viver, aprender, chocar-se com mas coisas exteriores do mundo. Assim, você começa a sentir a relatividade de sua importância. o homem é apenas um dos inúmeros animais que provocam a terra, apenas dotado de mais sensibilidade e condição de compreensão, mas nossa importância é a mesma de um cachorro, pombo ou qualquer outro bicho. Todos estamos solidários no ofício de viver e é por isso que acredito que a morte de um animal deveria afetar da mesma forma que o desaparecimento de um ser humano.

- Como o senhor chegou a essa concepção universalista?

- Emocional. as pessoas racionais existem em pequeno número e são muito antipáticas. Quem vive guiado pela razão e inteligência não tem humanidade. veja, no momento estão celebrando a morte de um grande poeta nacional, o português Fernando pessoa e todos estão babando. Mas o Luís de Camões, que escreveu poemas que não perderam a atualidade? Colocam o Fernando discutindo aquele negócio de heteromismo, fragmentando sua personalidade. Camões não, ele é homem de nosso tempo, sofreu, foi pobre, banido, naufragou, viveu a vida. enquanto isso, Pessoa vivia num pequeno escritório, era guarda-livros, correspondente musical, essas coisas. para mim, a razão não prima sobre o sentimento, muito ao contrário. Por isso considero Camões o grande amoroso da língua portuguesa, cheio de sentimentos de amor - correspondidos ou não. E isso está registrado em seus admiráveis sonetos.

- Então o senhor não gosta de Pessoa?

- Tenho a maior admiração por ele, mas é um tipo de poeta que não me provoca reação profunda. Diante dele, estou raciocinando, vendo a sutileza de sua inteligência e não a profundidade de coração.

- Poeta, o amor move o mundo?

- Sem dúvida alguma. Ele é cheio de nuances, e é comum amarmos a quem não nos quer enquanto essa pessoa deseja outra que, por sua vez ama uma terceira. é uma espécie de ciranda, cantiga de roda. Amar é inexplicável e Proust, em "À sombra das Raparigas em Flor" disse, a propósito da mulher que tinha amado: "e dizer-se que a grande paixão de minha vida foi por uma mulher que nem sequer era meu tipo. esse desencontro é muito comum".

- E casamento?

- O primeiro e o segundo não dão certo. Só o terceiro. Veja o Vinícius de Morais que casava muitas vezes porque, a cada união, se juntava a ilusão de certa eternidade. Então, quando ele apresentava a nova mulher, dizia: "vou apresentar minha viúva", pois tinha certeza que ficaria com ela até morrer. Dois anos depois Vinícius estava com outra viúva. Amar é a coisa mais importante da vida e quantos magnatas, cheios de dinheiro, sofrem por amor? De repente, uma mulher entra em suas vidas e estraçalham com tudo. Mesmo que na prática não se saiba bem como ao licar esse sentimento , a idéia do amor é a mais pura e elevada possível. A eternidade do amor é que é outro problema, como dizia Vinícius: "que seja infinito enquanto dure". Não, sou um poeta limitado e acho que o assunto de minha obra sou eu e isso não é bom, pois um grande poeta - como é o caso de Dante - não colocou seu nome na obra, não se considerou o bastante para colocar o pronome eu. O que descreve não é sua vida particular e "Divina Comédia" é, na realidade, um espetáculo cósmico. cervantes também não colocou sua vida no Dom Quixote e os grandes escritores têm os olhos voltados para o mundo. No meu caso não pertenço a uma tradição lírica portuguesa e brasileira limitada.

- Mas as pessoas se emocionam com sua obra. Então ela não seria tão individualista?

- É verdade que, falando destes probleminhas individuais, todo elogio que posso receber é de alguém dizendo que entrava numa fossa muito grande, leu minha poesia e melhorou, porque sentiu que eu tinha expressado uma situação existencial de dor, angústia e carência pela qual estava passando naquele momento, na verdade em que canta seu próprio umbigo. Isso é pouco. Ver através de minha ótica e por ela enxergar a dor que sinto, o sofrimento tão característico do lírico. Se conseguisse transceder o que penso, passando para uma visão geral do mundo, aí sim.

- O que é poesia?

- A verdadeira poesia me parece impessoal e está acima das dores individuais de quem as escreve.

- O senhor é chamado de "poeta maior" e tem horror a esse título. Por quê?

- não sou poeta maior coisa nenhuma e quem me chama assim deve ser pelo fato de eu ainda estar vivo, escrevendo, enquanto, outros já morreram. Deve pensar: puxa, este cara não pára. Não existe poeta maior, mas poeta, e, no Brasil, tivemos Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, raimundo Correia e Augusto dos Anjos, que é extraordinário. Há algo de universal, geral em sua obra, que é superior a dor de barriga. Uma visão de mundo, sentimento de Deus, beleza da vida e da arte. e isto transcede as misérias de nosso corpo. No meu caso, isto não aparece. Quantas vezes usei o pronome eu?

- Então quem é, verdadeiramente, poeta?

- Ele não tem identidade, é voz do mundo e não aparece em qualquer momento, mas de longe em longe.

- E sua prosa?

- Ela é profissional, fui jornalista a vida inteira. uma vez ou outra tentei fazer uns contos, no Jornal do Brasil, mas não me considero contista. Eu era cronista, de vez em quando achava sem graça ficar dando opinião sobre as coisas e então colocava um verso. noutras, um pensamento e noutras ainda, uma historinha para me divertir e dar ao público uma impressão de variedade. Como divertiu alguns leitores, achei que podia colocar um livro. "Contos Plausíveis" não tem base na realidade, quase todas as histórias são surrealistas. A gente abre um jornal e vê terremotos, seqüestros, tragédias. Torna-se, então, necessário, procurar a história de um gatinho que apareceu criado por uma cadela, para mostrar que o mundo não é só horror e uma plantinha pode se transformar em florzinha amarela. Essa é a função da crônica. Para discutir política ou economia há cronistas especializados, com páginas inteiras. Vamos, então, ficar na brincadeira para que, ao final da manhã, você consiga despertar um sorriso de satisfação em alguém. Isto é o máximo, e fico satisfeito de saber que alguém disse: "você viu o que o Drummond falou?"

- Qual é a sua visão do mundo?

- Metade lúgubre e metade risonha. 'E terrível dizer, mas à custa de guerras, surgiu a penicilina, o antibiótico. Então, ficamos obrigados a reconhecer que o mundo melhorou sob alguns aspectos e não vai acabar. A ciência ainda está no início de certos conhecimentos, mas vai chegar o dia em que haverá até agência de turismo para nos levar à lua.

- E "Observador no Escritório"?

- Tem partes de um diário que parei de escrever porque não considerei importante. Ia rasgar, mas, na hora, vi coisas que poderiam interessar à vida literária e política, pois eram épocas em que estávamos cultivando ilusões como agora: Constituinte, Democracia, Brasil melhor. As ilusões fracassaram, exatamente como está acontecendo agora.

- O senhor está lançando seu primeiro livro infantil, "A História de Dois Amores".

- Não tenho pretensão de ser um escritor infantil, fiz uma brincadeira, para me divertir, e sem intenção de tirar proveito material. Como a intenção foi esta, acho que estou bem pago. é difícil escrever para crianças e acho que meu livro é para a faixa de 12, 13 anos. A história termina com todos se amando.

- E o momento político brasileiro?

- É preciso ter paciência. Estou com 83 anos e já vi duas ditaduras, a do Getúlio e a militar, além de tentativas de democracia. Sinto um certo desencanto, mas acho que é preciso ajudar essa tentativa de Nova República. Se acharmos que todo o Brasil está pobre, que não há esperança de salvação, aí mesmo é que não dá. Então vamos esperar, ter confiança. Não se pode julgar um governo que começou noutro dia e herdou um ministério que não era dele. Sarney quer fazer alguma coisa e se ele estiver errado, a gente chama atenção.

- O senhor prefere a literatura ou jornalismo?

- Acho jornalismo uma coisa fascinante e creio ter nascido para esta profissão. infelizmente, minha vida não permitiu isto. Não conseguia sobreviver e fui ser funcionário público. Chegando ao Rio, fiz jornalismo de gabinete, mas nada de ficar perto do linotipo, do calor das máquinas. Gosto muito, porque ele ajuda o leitor clarificar as idéias, ser sintético e encontrar a palavra justa.

- E o jornalismo de hoje?

- Algumas destas leituras estão sendo esquecidas. por exemplo, as manchetes têm que ter certo número de batidas, sacrificando a língua portuguesa para atender ao tamanho. Então, saem coisas assim, por exemplo: "Figueiredo apelou ao ministro". Isto está errado, é "para o ministro". Ou então, "o presidente ontem reuniu-se com o ministro". Você já viu reunião de duas pessoas? Só na cama. Até o uso da vírgula está controlado e isto prejudica a criatividade.

- E se o senhor fosse fazer um jornal?

- Teria só oito páginas, reduzindo ao máximo notícias de catástrofes e anúncios. Além de uma boa caricatura na capa, claro.

- O senhor se pronunciou a favor do PT?

- Considero o PT o único partido brasileiro que deve ser chamado de partido. O Comunista quer chegar ao poder, mas não é um governo democrático e o maior número de brasileiros é de assalariados, com direito a ocupar um certo espaço na mesa do orçamento federal. Admiro o Lula, mas ele é politicamente imaturo.

- E o futuro?

- Tenho que preparar meu lugar no São João Batista. Quero ser cremado, mas embora haja uma lei permitindo à Prefeitura de criar um crematório, no Rio, a Santa Casa não permite. Então comprei um jazigo, que tem uma escadinha estreita e estou preocupado com a hora em que tiverem que subir com meu caixão. Vai ser uma barra, as pessoas terão trabalho, mas eu não tenho culpa. Também, morrer no Rio e ser cremado em São Paulo é dose e, ainda por cima, para o corpo ser levado é necessário que existam duas testemunhas e não quero amolar ninguém. Até para ser cremado no Brasil é difícil, que coisa!

Mineiro de Itabira
Carlos Drummond de Andrade nasceu no dia 31 de outubro, em Itabira do Mato Bentro, Minas Gerais. Seu primeiro poema foi publicado aos 14 anos - "Onda", no jornal Maio. Oito anos depois, conheceu o Modernismo, passando a se corresponder com Mário de Andrade.

Ilhado
Drummond dizia que sua obra literária foi determinada pela circunstância de ser mineiro. Vinha do Interior de Minas, uma região de mineração onde a dificuldade de comunicação era maior do que em outras zonas do Estado. "Nós vivíamos ilhados. Éramos fechados por necessidade e por contingência". Drummond casou-se em 1925 com Dolores Dutra de Morais. Nesse mesmo ano fundou "A Revista". No ano seguinte, abandonou a farmácia, que estudava desde 23, e foi trabalhar como redator no "Diário de Minas".

De Itabira ao Rio de Janeiro
Foi uma longa marcha, desde Itabira até o Rio de Janeiro, em 1930, passando por Belo Horizonte, onde viveu apenas a juventude, possivelmente a fase mais feliz de sua vida. Ao lado de Pedro Nava, ele namorava, bebia cerveja, brigava com a polícia, tentava os primeiros versos. Da infância, sua recordação mais marcante era a da passagem do cometa Halley - que ele viu de novo, decepcionado, no ano de 86. Rebelde, anarquista, autodidata, chegou a ser expulso de um colégio de jesuítas e, ao que parecia, não os perdoou. Sempre fazia questão de se referir ao autoritarismo da Igreja.

Biografia
Em 1993, o jornalista mineiro José Maria Cançado escreveu "Os Sapatos de Orfeu", biografia de Drummond. Ele ficou pesquisando três anos para falar da personalidade complexa do poeta - do tímido sedutor ao ex-militante do PCB que ficou com fama de apolítico e ao metafísico que escrevia sobre o cotidiano "Se há uma unidade nesses Drummonds é o amor pelos outros e pelo mundo. Através do amor e da poesia, ele alcançou a cura do pânico para se relacionar", sintetizou Cançado.

Afeto, carinho e respeito
Há pouco mais de dois anos, foram descobertas na cidade de Lavras, no sul de Minas, aproximadamente 200 cartas trocadas entre Drummond e sua mãe, Julieta Augusto Drummond de Andrade, do Rio de Janeiro para Itabira (MG). Nessas cartas, pôde-se descobrir que a relação do poeta com a família revelam uma dose de afeto, carinho e respeito incomuns. Em correspondências semanais, entre 25 e 48, Drummond abasteceu Itabira de notícias da publicação de alguns de seus livros, do casamento com Dolores, do nascimento da filha, Maria Julieta, e das relações com o então ministro da Educação, Gustavo Capanema.

O coração rateou
Drummond morreu no dia 17 de agosto de 1987, aos 84 anos, de insuficiência respiratória em conseqüência de infarte. Dois anos antes, ele tinha sofrido um outro enfarte. Numa de suas últimas correspondências, Drummond agradece à família a solidariedade em sua internação com quadro de insuficiência coronária. "O coração rateou, imprevistamente, mas graças a um conjunto de circunstâncias pude ser socorrido com presteza", disse. E completou: "Tudo bem no momento". Ele morreu oito meses depois, 45 dias antes de completar 85 anos.

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Franzé 28/09/2012 14:32
Grande Carlos Drumond de Andrade! Simplesmente o maior poeta brasileiro de todos os tempos. É o nosso Camões, só que mais cerebral. Mas sua modéstia não o deixava reconhecer este mérito próprio, classificando sua própria poesia como individual, quando a sabíamos universal.
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